O artigo do “filósofo” neoliberal Denis Rosenfield (“Anistia
sim!”, O Globo, 21/04/14) achincalha
não apenas a construção de uma memória sobre o Golpe Militar de 1964 (ao qual
ele se refere como “contra-golpe”), como tenta defender a manutenção irrestrita
da falta de punição aos agentes da Ditadura que torturaram, estupraram, seqüestraram,
explodiram, eletrocutaram, empalaram e assassinaram durante os anos de chumbo. Para
esse notório pensador das hostes conservadoras seria um crime sim encostar o
dedo nessa corja, fazendo-os responder por tudo que eles tramaram e executaram durante
o regime de exceção por eles patrocinados.
O filósofo tenta de todas as formas dar um verniz
pretensamente filosófico ao seu deplorável intento, apelando para o grotesco
argumento de que a revogação da Lei da Anistia seria não apenas salutar para a nossa
combalida democracia, mas algo que a ameaçasse:
O
grande problema da revisão da Lei da Anistia consiste em que ela seria uma
quebra de contrato, uma quebra de contrato institucional, que se encontra na
própria raiz da democracia brasileira. Não se pode, 50 anos depois, deixar o
dito pelo não dito como se a palavra que uma sociedade engaja consigo mesma
nada valesse. Tal medida não apenas produziria instabilidade institucional,
como seria uma péssima sinalização para o futuro. Se acordos políticos podem
ser arbitrariamente revogados, não há por que fazê-los, nem, muito menos,
cumpri-los. Na verdade, é uma volta da vingança sob a forma do politicamente
correto. Mais ainda, tal medida constituiria uma ameaça à própria democracia.
Ora, se é assim, porque o filósofo não usa a mesma lógica para condenar o Golpe de 64? Muito pelo contrário, o que vemos é o escriba do Instituto Millenium festejá-lo como um mal – sim, um mal -, uma espécie de quebra de contrato, mas feito por uma boa causa, já que teria impedido a instauração de um macabro regime comunista, que aboliria a família, Deus, Nossa Senhora do Parto, o Framengo, o jogo-do-bicho e a festeira Vila Mimosa.
É impressionante que
um sujeito que se intitule professor de uma universidade deboche assim de nossa
inteligência, de maneira tão inconseqüente. Um descalabro.
Outra conseqüência desse
raciocínio espúrio é imaginar o quão fácil teria sido impugnar o julgamento dos
criminosos de guerra a serviço do Nazismo. Bom, que simples, caso uma figura
com a desastrosa e canhestra mentalidade de Denis estivesse por lá – e ainda
bem para a humanidade que isso nunca tenha ocorrido! – os julgamentos seriam
imediatamente suspensos e os carniceiros da Gestapo e das SS teriam ido leves e
sorridentes para suas casinhas, para passar os últimos anos de suas vidas com
toda a impunidade que esse odioso pensamento consagra. Tudo porque a belezura
do Rosenfield acharia tudo isso não mais do que um “ato de vingança” e “uma ameaça
à democracia”. A Alemanha e a própria Civilização ocidental teriam se saído
muito melhor se os órgãos multilateriais tivessem jogado todos os sórdidos e
bárbaros crimes dos nazistas para bem debaixo do tapete. É claro que só tendo
uma concentrada e cavalar dose de cinismo intelectual para cogitar uma hipótese
tão aberrante e atroz.
Há,
ademais, uma série de iniciativas parlamentares que visa explicitamente a essa
revogação, restrita, evidentemente, aos artigos que dizem respeito à violência
cometida por alguns grupos militares, nenhuma referência sendo feita à
violência praticada pela luta armada empreendida por organizações de esquerda.
Vale para uns, não vale para outros.
Se a bizarra lógica de Denis pudesse
ser levada a sério – o que duvido, a não ser que esse país tenha se tornado uma
imensa estrebaria.... – mais uma vez teríamos que recorrer ao exemplo dos
nazistas para contestar a sua patética e tresloucada teoria: assim, teria sido
um absurdo ter levado a julgamento apenas – eu disse a-pe-nas – os nazistas. Muito
melhor teria sido julgar e condenar à forca ou à cadeira elétrica aqueles que
pegaram em armas para resistir ao totalitarismo hitlerista. Um absurdo terem
brindado com total impunidade os membros da Resistência Francesa, os partizans,
os poloneses do Gueto etc. No mínimo que eles mereciam era uma bela de uma
cadeia – e que lá mofassem. Esse é o prêmio de quem realmente luta pela
democracia através das armas. Ao menos essa parece ser a concepção de alguns
inveterados neoliberais.
Mas Denis não se satisfaz em emitir
opiniões devastadoras e chocantes. O seu artigo consegue descer mais e mais o
nível do razoável. Não satisfeito em defender idéias e conceitos tão
repulsivos, o filósofo da “Revolução Redentora” parte para a agressão contra os
fatos, tratando-os a pedradas e pescoções. As linhas abaixo são um retrato do modus operandi intelectual do sujeito – incrivelmente assustador...:
A
transição democrática no país foi um exemplo para o mundo, tendo se realizado
sem traumas nem eclosão de violência. São inúmeros os exemplos no planeta em
que a saída de regimes autoritários ou ditatoriais se deu pela luta armada e,
mesmo, pela guerra civil. Não é o caso do país, que fez uma transição pactuada
entre os próprios militares democráticos, a oposição, sobretudo personificada
no MDB, e os egressos do partido do governo, a Arena, que vieram a fundar o
PFL. O seu instrumento central foi a Lei da Anistia, que alcançou todos os
envolvidos em atos de violência anteriores. Tratou-se, naquele então, de um
grande acordo nacional, maciçamente apoiado pela sociedade brasileira, aprovado
pelo Congresso Nacional e, ainda mais recentemente, validado pelo Supremo
Tribunal Federal.
Maciço como se ainda vivíamos numa ditadura? Que pesquisa feita na época mostra esse apoio irrestrito e apaixonado da “sociedade”? E de onde ele tirou esse papo-furado de que a “transição democrática” nesse país não sofreu com a violência (mas que absurdo minha nossa senhora!)? Esse senhor por acaso não era chegado em ler jornal ou se na sua mentalidade o Atentado terrorista do Rio Centro não existiu? Todos sabem, até uma criança analfabeta, que balbucie algumas poucas palavras que a linha dura do Regime Militar atuou de todas as formas para boicotar a tal transição (inclusive realizando inúmeras execuções). Todos sabem, menos o filósofo. (Mas será o Benedito Denis? Jesus Maria José...)
Num de seus últimos
arremates, o pensador se supera e desce às profundezas do pensamento ocidental
sobre Democracia. Ele carrega no verniz e nos oferece uma reflexão digna de ser
lida à luz de archotes:
Note-se
que a esquerda “revolucionária”, hoje tão decantada, ficou totalmente à margem
deste processo. Não apenas isso, ela tinha sido completamente derrotada na luta
armada, não tendo tido nenhum apoio popular, sendo uma operação militar de
intelectuais e estudantes, despreparados, porém ideologicamente bem
apresentados. Atualmente, procura-se envernizar essa esquerda que não tinha
nenhum compromisso com a liberdade e a democracia. Hoje, eles posam de
combatentes da democracia, quando nada mais eram do que instrumentos de
implantação do comunismo/socialismo no país. O seu objetivo consistia em instituir
a “ditadura do proletariado” que, enquanto “ditadura”, não pode ser
evidentemente democrática!
E
somos obrigados a perguntar mais uma vez, de forma bem simples, com uma vontade
louca de desenhar: ora, como ela poderia ter participado da transição se elas
foram reprimidas e cassadas ferozmente?
Aqui
o direitista recorre a velhos espantalhos (“a implantação do
comunismo/socialismo”...) para fugir do fundamental: o que os militares e
golpistas queriam evitar era a implantação de medidas concretas que visavam a
uma redistribuição de poder e à implantação de novos padrões de produção e
obtenção de capital no Brasil, como seriam os casos das reforma agrária,
urbana, bancária, educacional. Era disso do que se tratava e não de fantasmas
inventados por carrascos da democracia e que seguem sendo repetidos à exaustão
por papagaios e viúvas do Regime Militar.
Perto do fim (ou depois
dele) o filósofo joga a toalha e parte da maneira mais descarada possível para
a justificação de um dos atos mais degradantes perpetrados pelo Regime Militar –
o massacre do Araguaia:
Um
dos episódios mais retomados nesses últimos meses, como de desrespeito dos
militares com os direitos humanos, consiste na guerrilha do Araguaia. Agora, os
atores revolucionários são apresentados como combatentes da democracia. Eles
eram maoístas e seguiam as diretrizes dessa forma de marxismo asiático. Seu
objetivo consistia claramente em criar no Brasil um Estado totalitário aos
moldes de Mao. Alguns eram também albaneses, uma variante ainda mais mortífera
do maoísmo. Para eles, a democracia era burguesa e, portanto, deveria ser
completamente destruída. Neste sentido, o que os militares fizeram ao
aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse
entre nós.
Neste
sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que
o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós. Liberticidas se tornam
combatentes da liberdade!
Aqui
o autor consegue sabotar qualquer esboço de respeito que eu possa ter pelo seu dantesco
artigo. Combater idéias - vá lá! Agora, tentar fazer a reabilitação intelectual
de um ato asqueroso e criminoso como foi o massacre e trucidamento de militantes
políticos, tendo ainda a coragem de frisar que os assassinos queriam “simplesmente evitar que o totalitarismo
maoísta se instalasse entre nós” - não, não e não. Aí é demais Sr. Rosenfield.
E, além de tudo, é um raciocínio tão tosco que toma
como pressuposto a nossa incapacidade total e absoluta de não acreditar na
absurda tese de que uma guerrilha que contava com umas poucas dezenas de
militantes estivesse prestes a detonar uma revolução cultural que se irradiaria
do Oiapoque ao Chuí, passando pelas Avenidas Atlântica e São João em Sampa.
Na verdade, mesmo que isso fosse verdade, como
tolerar que opositores políticos possam simplesmente ser executados e até decapitados,
e isso estando totalmente desarmados e rendidos? Mas é claro, tratam-se de
autênticos defensores da verdadeira democracia e dos valores democráticos. E
são tão democráticos que só toleram e concebem apenas uma noção de democracia:
a de fachada liberal-mercadológica.
É o espírito da Marcha que nos ronda como um espectro
e que continua a pairar sobre nossas cabeças.
Leonardo Soares é professor de História.
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