Por Leonardo Soares
Paulo
Malhães não disse tudo antes de ser assassinado. Além de assassino, torturador, mentiroso e
terrorista, ele também era um livre empreendedor. Ele acabou não confessando
uma outra faceta da sua doentia e aterradora personalidade: além de tudo acima citado,
ele também era um Liberal.
Sim,
ele era um Liberal! Talvez não por princípio ou convicção filosófica - é muito improvável que ele fosse
um arguto leitor de Locke, Smith, Ricardo, Hayek, Friedman, Campos ou Merchior.
Mas era um liberal por extinto. Ele era um liberal em ato. Um liberal prático,
que colocava à prova a sua teoria nas ações de espancamento e execução dos seus
opositores – os que acreditavam que a liberdade democrática é mais importante
que a liberdade do Capital. E era Liberal também na medida em que arregaçou as
mangas – e pistolas – para livrar a região onde morava da bandidagem.
Malhães
era em tudo coerente (em pensamento, ação, omissão) com o regime ditatorial de
que foi fruto e um dos grandes fomentadores. Toda a prática voltada para retirar
a vida de homens e mulheres, de maneira torpe e brutal, seguia um macabro
roteiro que começou a ser articulado bem antes do Golpe de 64 e já vinha sendo
experimentado nos porões de delegacias policiais, matagais e rios da Baixada
Fluminense.
Com
seus crimes e “justiçamentos” Paulo pôs para funcionar um conjunto macabro de
práticas de aniquilamento de grupos e figuras do que o Sistema entendia na
conjuntura como sendo o grande mal, a grande ameaça à boa sociedade, o elemento subversivo, agitador, nefasto e
terrorista.
Tortura e torturador: frutos de um
Estado terrorista
Mas
Paulo fez questão de afirmar que nada foi feito solitariamente. Ele demonstra
que longe de ser um ato solitário ou à revelia dos altos escalões, as práticas
de tortura seguiam uma rígida diretriz ditada por uma linha de comando que
ligava os carniceiros das masmorras do regime à alta cúpula do regime
ditatorial.
Várias
execuções – inclusive de agentes de antigos colaboradores da ditadura – foram
decididas pela chamada “comunidade de informações”. Sobre as torturas, ele declarou
à Comissão da Verdade que “ele (o ministro) era sempre informado. Estava
sabendo. Relatórios eram feitos e entregues ao chefe da seção.”
E
Malhães não era o único. Todos já sabem. Mas não resta mais dúvidas de que eles
eram exaustivamente treinados, preparados e instruídos para massacrar e
trucidar cidadãos brasileiros pelo próprio aparato do Estado. Portanto, a
tortura e o extermínio de militantes políticos não foi de maneira alguma atos
arbitrário de psicopatas, mas sim uma política de Estado. Este trecho do
insuspeito O Globo (órgão que foi
ardoroso apoiador da “Revolução Redentora de 1964”) é bastante ilustrativo:
[Em fins da década de 60] A guerra
suja, que resultaria em morte e desaparecimento de mais de 300 pessoas,
começava naquele momento. E Malhães, jovem oficial que anos antes aderia aos
golpistas que derrubaram o presidente João Goulart, era a essa altura um quadro
qualificado. Após passar pelo Centro de Ensino de Pessoal (CEP), que qualificou
alguns dos mais notórios torturadores do regime, Malhães foi requisitado pelo
Centro de Informações do Exército (CIE).
Paulo
Malhães (mas não só ele) foi um dos agentes do regime de terror implantado pelo
consórcio empresarial-militar que “melhor” incorporou o espírito que move todo
um sistema de dominação (ao mesmo tempo ideológica, social e política) baseado
na mais desbragada e selvagem opressão e extermínio de grupos tidos como
inimigos. Por um tempo o mal era encarnado por militantes e agentes subversivos
da esquerda, cuja localização era mais difusa, espalhados que eram em células
clandestinas, em alguns grandes centros urbanos, mas invariavelmente filhos de
classe média. Esse era o alvo dos Malhães das décadas de 60 e 70.
Na
mesma matéria do pasquim neoliberal, Adriano Diogo, deputado petista e
presidente da Comissão Estadual da Verdade de SP faz uma declaração bem
sintomática. Segundo ele,
Ainda não sabemos o que aconteceu
direito. Mas o Malhães era um cara importante dentro da estrutura da ditadura.
A impressão que dá é que é que a ditadura não acabou. Essa página da História
do Brasil ainda não foi completamente virada. Dá a impressão de que a morte
dele foi algo pensado.
Mas
Adriano erra feio num ponto. A tal "página da ditadura" nem começou a
ser virada para as populações das favelas, periferias, morros, prisões e
casebres desse país. Ela, ao contrário, parece estar a cada dia maior, mais
pesada e encharcada de sangue.
Essa
tal "página da ditadura" nunca fez parte do passado para esses
segmentos da sociedade. Ele continua fazendo parte do cotidiano de medo,
terror, impunidade e covardia patrocinados pelo Estado e impostos com
brutalidade e violência contra tais populações. Num cenário que enche de gozo e
satisfação ás elites brancas, limpinhas, cheirosas e decentes desse país.
E
era na atuação exemplar de Malhães em relação a esses atributos que se mostra
com aterradora clareza os liames que unem a repressão aos militantes políticos
da esquerda durante a Ditadura e a repressão ás classes perigosas (pobre e
negra) nos dias atuais. Uma levou a outra. Para a alegria de nossa asquerosa
Direita, a macabra máquina de extermínio patrocinada pelos agentes terroristas
nunca deixou de funcionar. Só foi radicalmente redirecionada para outros alvos,
de tonalidade mais escura.
Quando matar é uma diversão
Em
seu depoimento dado à Comissão Nacional da Verdade, Malhães descreve em riqueza
de detalhes como operava aquela máquina nefasta, que fazia e ainda faz a festa
de muitos liberais com espírito de Capitão do Mato. Disse que os corpos eram
lançados nos rios, após a retirada dos dedos e da arcada dentária, para impedir
a identificação. E com prazer indisfarçável, dá uma explicação bem mastigada:
- Naquela época não existia DNA,
concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são
as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada
dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, nãos.
E, aí, se desfazia do corpo.
Isso
tudo Malhães fazia na Casa da Morte. Mas até chegar ali, Pablo prestaria
valiosos serviços para a Ditadura Empresarial-Militar em outras paragens. Mais
precisamente, na Baixada Fluminense. Ali chegaria em 1969 para caçar o
ex-marinheiro Roberto Emílio Manes, um dos cabeças do levante de sargentos e
suboficiais de 1964, que estaria realizando uma série de assaltos na região.
Mas
como desconhecia, segundo a reportagem, os "grotões da periferia",
"foi socorrido pelo então comissário de polícia Luiz Cláudio Azeredo Vianna,
chefe de uma pequena unidade da região". Uma aliança que se manteria
intocada e cada vez mais selvagem - e isso décadas depois do sepultamento da
Ditadura.
Pudera.
Malhães era um quadro dos mais qualificados. Depois de minucioso treinamento no
Centro de Ensino de Pessoal - centro de excelência no preparo e aperfeiçoamento
dos mais notórios torturadores - seria recrutado pelo Centro de Informações do
Exército. E corresponderia com galhardia a tamanho investimento estatal na arte
do extermínio e da violação dos direitos humanos. Melhor para os liberais
reacionários, que tanto se fartaram com as tetas do regime terrorista.
E
Pablo não deixava dúvidas sobre o seu empenho em fazer desse país uma pátria
mais segura, democrática, cristã e humana:
inicialmente, interrogava com ajuda
do pau-de-arara e do choque elétrico. Uma ex-presa política, grávida quando
submetida às sessões de tortura chefiadas por Malhães, disse que os choques
levaram-na a pensar que o bebê sairia do bebê. Não saiu, mas nasceu meses depois,
com uma severa surdez.
Mas
Pablo também gostava - além de Deus, da pátria e da família - de bichinhos:
Eram dele também os filhotes de jacaré batizados de Pata, Peta, Pita,
Pota e Joãozinho, usados para amedrontar os presos levados para os cárceres do
DOI na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
A
gana de Pablo em zelar pelos valores democráticos era tanta que "passou a
usar métodos mais sofisticados para arrancar a verdade dos presos, convencê-los
a trair os companheiros e, quando necessário, sumir para sempre com os corpos
que ficavam pelo caminho".
Levado
para a Casa da Morte, Pablo passou a se chamar Laurindo. O nome mudara, mas o
empenho em lutar por um Brasil melhor e mais puro só aumentava. Fora levado
para lá pelo comissário Luiz Cláudio, o Luizinho.
Agora, é bala na pretada...
Luizinho
era um dos homens de confiança do banqueiro do bicho Abraão David. Após o fim
da Ditadura, Malhães compraria um sítio ao lado do haras pertencente a
Luizinho, no bairro de Ipiranga, Nova Iguaçu. Esmagada a serpente e tendo sido
todo o seu veneno comunizante desinfetado do território nacional, Pablo passou
a mirar a carcaça de outros alvos – não menos perigosos.
E
segundo testemunhos, passou "a impor a lei a seu modo violento na
região". Percorria a cavalo as ruas do bairro á caça de traficantes de
drogas. "Quando os avistava, sacava a arma e disparava".
Discretamente "os vizinhos diziam que Malhães liderava um grupo de
extermínio".
Pablo,
ou Laurindo, enfim, o patriota da Direita liberal, racista e reacionária, o
menino que um dia servira ao Movimento AntiComunista (MAC), trilhou com denodo
a trajetória do típico agente do terror nesse país, que dos dedos, arcadas e
carcaças dos membros da luta armada passou a cuidar em "tempos
democráticos" de dar um jeitinho nos "elementos" daquela raça
que vive enchendo as nossas cidades de bandidinhos.
Malhães
pode ter morrido - sem nunca ter sido julgado por seus crimes, mas os
Amarildos, Cláudias e Douglas de ontem, de hoje e de amanhã revelam o quanto
ele fez escola.