quarta-feira, 24 de agosto de 2016



Leonardo Soares dos Santos
Professor de História/UFF/Campos
Professor Colaborador do Programa de Mestrado do NEPP/UFRJ



 *Texto originalmente publicado no Jornal Desacato.




Esse ensaio traz elementos para a reflexão do debate crítico sobre a questão racial, racismo e política de cotas. Primeiro de tudo, ele discute a dimensão histórica da palavra raça. Eu pretendo mostrar que o termo não tem somente aspectos biológicos. Essa é uma tradição inventada. Depois, ele propõe que a raça tem especialmente um sentido político e cultural. Finalmente, eu argumento que a divisão racial não é somente um problema cultural, mas é a expressão de estruturas de poder, hierarquia social e monopólios.




O debate sobre racismo no Brasil parece estar cada dia mais aceso. Isso se deve nem tanto ao nível altíssimo de vítimas da violência policial entre a população negra: na verdade, boa parte da sociedade brasileira nunca viu tal fenômeno como um problema efetivo: a morte de negros e negras, particularmente os moradores de favelas, sempre foi visto com muita tranquilidade, como se pertencesse a ordem natural das coisas.
A emergência de tal discussão no cenário público parece estar muito mais associado ás políticas de afirmação que em tese beneficiariam aquelas populações, especialmente a mais badaladas delas, a política de cotas objetivando maior inserção da população negra no ensino superior gratuito.
Pois bem, bastou não só falar, como tentar institucionalizar direitos contemplando demandas históricas daquela população para que se irrompesse o conflito.
E isso acabou ocorrendo de uma maneira um tanto inusitada. A política de cotas, como que num passe de mágica, motivou vários agentes a dissertarem sobre o tema da Raça e do Racismo. Reparem que as "Cotas" tiveram o mérito de reavivar a discussão de um tema que fala muito sobre a realidade histórica e atual de todo um povo; ela conseguiu incutir na intelectualidade brasileira, ainda tão apegada ao mito freyriano da "Democracia Racial", a urgência de tal questão. Algo que nem as políticas de extermínio da população negra nem a péssima situação desse segmento frente ao mercado de trabalho, políticas públicas (educação, saúde, moradia) e justiça, conseguiram.
Mas a motivação de boa parte desses agentes também foi peculiar.
O interesse pelo tema da Raça não visou aprofundar o tema da exploração e desigualdade que tanto emperram o desenvolvimento social de tão amplo segmento da sociedade; muito pelo contrário: o debate sobre Raça serviu, isso sim, para estabelecer trincheiras contra qualquer avanço de políticas afirmativas que objetivassem minorar a desigualdade racial.
Isso mesmo: o debate serviu como arma para agentes tentarem deslegitimar e desqualificar a defesa de tais políticas. E dentre elas, a mais visada por tal empreendimento foi, sem dúvida, a política de Cotas.
Mas como isso foi possível?
Basicamente, o argumento utilizado era bem simples: tais políticas seriam equivocadas na medida em que ao definir os seus critérios de abrangência, elas buscam se pautar no conceito de Raça. O que seria um lamentável mal-entendido, pois, como todos deveriam saber, "raça é algo que não existe". 
Afirmação taxativa, que empresta à opinião dessa corrente um indefectível ar de infalibilidade. Como se não pudéssemos questioná-la.
Até porque, a afirmação não teria sido formulada por qualquer um, a partir de qualquer lugar. A raça não existe - no sentido de uma ficção que nada explica - porque foi a ciência biológica, a nossa Biologia, que mostrou ao mundo que ela não passa de um mito.
O efeito que esse argumento de autoridade exerce sobre o debate é tamanho que, em não poucas situações, ele é capaz de interditar o debate. Ou pelo menos essa é a intenção de alguns agentes – é como se quisessem dizer: "Pra que perdermos tempo com algo que não existe?"

* * *

Mas o efeito pretendido é bem outro, de conteúdo muito mais tendencioso, pois se fundamenta numa operação mental de matiz ideológico, a qual, portanto, é muito pouco honesta.
Tendo a constatação da não-existência do conceito assegurada pela ciência biológica, não é apenas o conceito de Raça que se encontra em xeque: é toda uma política pública, por supostamente se basear na existência da dita, que se vê colocada numa verdadeira encruzilhada. É como se, efetivamente, ela mesma não tivesse sentido algum. O que esperar de uma iniciativa baseada em fundamento tão frágil? Quais os danos que ela poderia ocasionar ao plano das relações sociais? 
Um desses danos seria dividir a sociedade em raças. Só mesmo um ato autoritário - quase totalitário - de implantação de uma política como aquela por parte do Estado para fazer com que a sociedade passasse a nortear suas ações e relações pelo prisma da raça. Só mesmo o Estado em seu furor interventor para conseguir incutir na realidade efetiva das pessoas critérios não apenas frágeis, mas desprovidos de qualquer concretude. É a ideologia (falsidade) aprisionando a realidade (verdade). É a mentira da Raça impondo a divisão e o ódio entre as pessoas.
Pior, o argumento - e esse é o seu outro efeito - cria um grande embaraço aos seus defensores: alinhar-se à política de Cotas seria o mesmo que se alinhar aos racistas. Pois tanto um como o outro tomam como dogma - enganoso e perigoso -  a existência da Raça. Por defenderem o discurso falso e pernicioso da existência da Raça, não são eles verdadeiros racistas? 
Alguns mais afoitos se apressam em pôr num mesmo plano Arianistas - e até mesmo Nazistas - e partidários das Cotas. Sim, parece absurdo, mas é o que leva a tentativa de se reduzir o debate a ver quem encadeia melhor o argumento de autoridade, que visa antes desqualificar o oponente, do que estabelecer um diálogo franco com ele, aberto à revisão e reformulação de alguns de seus pontos de vista, por exemplo. Visa-se, antes de tudo, interditar o próprio debate.
O campo de debate sobre as cotas mais parece assim um octógono de UFC, onde tudo - ou quase tudo - é permitido para derrubar o adversário.

* * *

Mais do que contestar o absurdo logico de tal comparação (pela qual seria perfeitamente possível igualarmos Hitler e Luther King), parece bem mais frutífero contestarmos alguns de seus pilares.
Um deles é o que sustenta a tentativa de desqualificar a posição pró-Cota partindo da afirmação de que o seu conceito-chave, o de Raça, foi seriamente contestado pela Biologia.
Afirmação problemática, não tanto pela formulação em si, mas pelo uso que dela se faz com vistas a obter ganhos no debate político da questão racial.
Em primeiro lugar, a utilização dessa afirmação toma como pressuposto de que o conceito de Raça é um termo pertencente exclusivamente ao campo da Biologia, daí que coubesse a essa disciplina a tarefa de consagrá-lo ou prescrevê-lo, pois só ela teria os meios capazes de avaliá-lo.
Ora, basta uma simples consulta aos diversos dicionários disponíveis para verificarmos o engano de tal posicionamento.
Em nenhum verbete por mim consultado o termo Raça tem como único sinônimo uma definição estritamente biológica.
O Dicionário da Língua Espanhola inicia o texto do verbete indicando que o termo Raça tem como sinônimo a palavra Casta. Ou seja, ele designa primeiramente um grupo social que se distingue dos demais grupos, respaldado pela vigência de uma hierarquia de poder. A acepção biológica acaba figurando em segundo lugar.[i]
Ficamos sabendo que a palavra Race, segundo o dicionário francês, possui uma ampla gama de significados. O verbete é tão extenso que se divide em quatro conjuntos distintos de sinônimos.[ii]
No primeiro temos os significados da Raça como derivações do conceito de família. Mas família aqui no sentido de estamento social: família nobre; nobreza.
No segundo temos então a demarcação dos significados mais propriamente biológicos, mas todos eles referidos aos animais não humanos.
No terceiro sim, podemos ler o conjunto de sinônimos do termo Raça tal como foi consagrado como sendo o principal nos dias atuais:  o de teor mais estritamente biológico.
Contudo, há que se frisar: o significado biológico é apenas mais um entre outros tantos significados do termo Raça. Este não se esgota naquele.
E mesmo aqui os componentes biológicos não são absolutos ou isolados de qualquer contexto social: eles são determinados ou afetados por questões culturais e históricas.
O próprio termo Raça não é imutável. Ele foi mudando com o tempo. A indicação desse caráter histórico do conceito é um dos méritos do verbete francês. A Raça como um conjunto de caracteres comuns é uma acepção encontrada num texto de 1684. Já o termo do século XIX, por um tal de Gaxotte, frisa que os caracteres raciais também são culturais e provém de "um passado comum".
O Dicionário da Língua Inglesa também é bastante extenso. Mas ao contrário dos anteriores inicia seu inventario de significados e termos correlatos pelos de teor biológico. Assim no primeiro conjunto de sinônimos temos as seguintes definições:
E já no segundo temos algo bem diverso: “Qualquer grupo de pessoas ou qualquer agrupamento de pessoas que tem, ou assume ter, características comuns”. Ou seja, a expressão "ou assume ter", indica que a questão não é puramente biológica.[iii]
O da Língua Portuguesa destaca os mais diversos sinônimos do termo: biológico, étnico, cultural e até morais (como o de número 11):
raça1 ra·ça sf 1 Divisão dos vários grupos humanos, diferenciados uns dos outros por caracteres físicos hereditários, tais como a cor da pele, o formato do crânio, as feições, o tipo de cabelo etc., embora haja variações de indivíduo para indivíduo dentro do mesmo grupo. [A noção de raça é bastante discutível, pois deve-se considerar com mais relevância a proximidade cultural do que o aspecto racial.]: “Não seja preconceituoso. Raça é uma só: a raça humana! […] A raça humana se divide, meu senhor, em etnias: a etnia negra, a etnia branca e a etnia amarela etc.” (Z1). 2 Conjunto de indivíduos que pertencem a cada um dos grupos humanos, descendentes de uma família, de uma tribo ou de um povo, originário de um tronco comum. 3 O conjunto de todos os seres humanos; a espécie humana, a humanidade: “É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais […] esperança na felicidade da raça” (LB2). 4 Conjunto de pessoas que apresentam as mesmas raízes étnicas, linguísticas ou sociais: “Deve ser hebreu – explica Libindo, com um sorriso inefável de quem tudo sabe. – Essa raça tem um faro finíssimo para o mistério e para o sobrenatural” (EV). 5 A ascendência ou origem de um povo. 6 Série de gerações que compõem o conjunto de ancestrais de uma família ou de uma pessoa; linhagem: “Chiquinha […] achou-se de esperanças e pronta a dar à luz. Já veem os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir com facilidade” (MAA). 7 Cada um dos grupos de algumas espécies animais, cujos caracteres físicos que os diferenciam se mantêm ao longo de diversas gerações: “[…] no Brasil são pouquíssimos os cães-guias (cerca de quarenta), pois só podem exercer esse ofício os da raça Golden Retriever, uma determinada linhagem de labradores, e outra muito específica de pastores-alemães” (CMa). 8 Classe de pessoas que revelam possuir certas qualidades que se sobressaem. 9 Qualidade de indivíduo que se supõe ser própria de origem ilustre, como a coragem, a distinção, a elegância etc. 10 Grupo de indivíduos da mesma profissão ou que exercem uma atividade comum: “[…] zombava e fazia pouco da raça orgulhosa e soberba dos médicos” (TM1). 11 Grupo de pessoas que são normalmente identificadas por seus defeitos ou falhas de caráter. 12 FIG, COLOQ Grande determinação ou muito empenho: Ganhou a partida com muita raça.[iv]

Voltando um pouco no tempo, mais precisamente, no verbete Raça do Dicionário de Caldas Aulete, de 1911, somos obrigados a pensar em outras questões. Não é apenas o conceito de Raça que mudou ao longo do tempo. Mudou também, e muito, o que chamamos de biologia. Não basta afirmar que a biologia se apropriou do termo raça a partir de meados do século XIX. É preciso ir além e se perguntar: mas que biologia foi essa?
Trata-se de uma biologia que associa caracteres orgânicos ao comportamento moral dos indivíduos. Um prato cheio para a criminologia da época. Mas mesmo aqui, mesmo em se tratando de uma ciência com objetivos biologizantes do comportamento humano, ou melhor, da raça humana, o que vemos é um discurso normativo e moralizante buscando se respaldar na ciência biológica da época. Na verdade, ele acaba retomando uma antiga dimensão do conceito de raça: a que tinha a ver com o caráter moral. A diferença é que isso não é apontado para destacar positivamente caracteres das famílias nobres (sangue nobre, sangue azul, raça de bravos): ele agora serve como um dispositivo para o reconhecimento de traços comuns dos membros criminosos das classes perigosas, a classes dos elementos de "maus instinctos", os de "má indole".
Em suma: raça aqui, no contexto de meados do século XIX até os primeiros anos do XX, não é apenas uma questão de cunho biológico. Ela é antes de tudo um problema moral.[v]
os ascendentes e descendentes originários de um mesmo povo ou de uma mesma família; A raça judaica. A raça saxônia. a illustre raça dos Menezes. Geração, gente: Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra estrada senão a da servidão ou a da licenciosidade. Geração, família: Junto d'estes ajoelhei e derramei lagrimas; eram sepulcros das raças que educara o Evangelho; dormitam lá irmãos meus. Variedade da espécie humana e em geral de qualquer espécie de animaes que se conserva e perpetua pela geração: A raça branca. A raça negra. A raça amarella. Existem várias raças de cães. [Mr. Broca define-a: o conjunto de indivíduos assas semelhantes entre si para se poder affirmar que descendem de antepassados communs sem que se affirme por isso que hajam descendido de um ou muitos pares (ou casaes) primitivos.] Descendente (de qualquer sexo): Seu marido, illustre raça dos Goncalves. Categoria, classe ou grupo de pessoas com certas e determinadas qualidades ou predicados: A raça dos calumniadores, dos maldizentes, dos tartufos. Os homens em geral, a humanidade: As raças vindoiras. Casta, variedade, especie, jaez, laia. A raça humana, os homens. Raça de víboras, gente perversa: raça infame de víboras dolosas. Cavallo de raça, o que provem de boa espécie, de boa casta. Nobreza de raça, diz-se das pessoas que descendem de antepassados nobres ou cuja nobreza não foi havida por merce actual. Ser de má raça, ter maus instinctos, má índole, condição perversa ou tendência especialmente para o mal; ser de má qualidade.[vi]

* * *

Não é só isso. Alguns desses verbetes confirmam que a utilização do termo raça é anterior ao nascimento da Biologia como campo do conhecimento, fundado em bases cientificas. A associação entre Raça e Biologia, como se a primeira fosse uma criação da segunda, é ela mesma uma tradição inventada.
Os verbetes confirmam as observações de Michel Foucault sobre a reapropriação do termo efetuada por Boulanvilliers na segunda metade do século XVIII. E mesmo aqui, observa o filosofo francês, a noção cunhada na palavra era eminentemente político e social. Raça designava grupos sociais na Franca da época. O uso biológico do termo só seria difundido no século XIX.[vii]  
Observação semelhante é realizada por Hannah Arendt, partindo do mesmo exemplo de Boulanvilliers. Mas acrescenta ela: o nobre francês se apropria de um termo (Raça) que tem suas origens na Roma antiga. Seria o darwinismo social de meados do século XIX o responsável por capturar o termo, depurando-o do seu conteúdo político, reinventando-o, transformando-o praticamente numa categoria da ciência biológica, tal como se convencionou imaginá-lo.[viii]

* *  *

Penúltima observação. O postulado de que a "Biologia já provou que Raça não existe" é a típica assertiva que visa antes de tudo interditar o debate; ela não é expressa com o objetivo de se impor sobre outras opiniões, e assim fazendo, acaba reafirmando a própria legitimidade do campo de debates. Não, a assertiva busca se impor como argumento de autoridade, não reconhecendo por isso a legitimidade dos outros argumentos - algo tão básico num diálogo que se pretenda franco.
O problema todo, como se já não bastasse, é que tal assertiva é ela mesma um engodo. Ela parte de um falseamento da realidade. Tenta impor uma visão autorizada - no sentido de que teria a autoridade de encerrar o debate - de que a Biologia, tomada como um todo homogêneo, teria descoberto a inexistência da raça. 
Estamos diante de uma dupla falácia. Em primeiro lugar, toma como existente uma ficção: a de que podemos falar realmente de algo que seja Biologia, ao menos como campo do conhecimento. Não, o que temos realmente são correntes, grupos, perspectivas, núcleos, que formam efetivamente o que conhecemos como Biologia. Em segundo, e muito mais grave, é que ela apela para um dos piores tipos de informação: a versão que toma a parte pelo todo. Não é bem verdade que todo a Biologia compartilhe da ideia de que a Raça não exista. Essa (a da inexistência da Raça) é a posição, por exemplo, de estudiosos como Richard Lewontin e Stephen J. Gould. Mas nomes como Richard Dawkins e Anthony Edwards, muito pelo contrário, reiteram a sua existência, a sua importância como elemento definidor de algumas importantes diferenças entre as pessoas.[ix]  

* * *

Um último ponto merece destaque. 
É preciso que se frise: não é a raça que provoca a divisão; são grupos sociais detentores de mecanismos de poder, controle, distinção e exclusão (e de incluir, quando é do seu interesse ou desejo) que produzem a divisão. Toda a divisão, mesmo a "divisão racial", é ela mesmo um constructo social. Nunca é um fenômeno biológico. 
Ela é resultado histórico da atuação de certos grupos que tem ou tinham o poder de reafirmar divisões, de modo a cristalizar hierarquias, mecanismos de poder e privilégios.
Nesse sentido, a raça é produto de um processo social de divisão ou de diferenciação, não o contrário. Como já dizia Durkheim em Formas Elementares da vida religiosa, as classificações sociais - e podemos incluir aqui as tidas como "raciais" - são produto das divisões sociais. E não o contrário.
Mas pode-se indagar: os grupos do autointitulado Movimento Negro não estariam fomentando a criação ou recriação de mais divisões ao reiterar uma identidade pautada no critério racial?
Não exatamente. Esse caso é bem distinto. Estamos falando de grupos historicamente fragilizados, que são antes os maiores penalizados pelas estruturas de poder encorpados por séculos de escravidão. A identidade racial aqui funciona aqui como claro instrumento de denúncia de iniquidades e de um processo estrutural de segregação e marginalização. No fundo o que se coloca em xeque é o discurso liberal da igualdade entre todos os indivíduos.
Na verdade, os agentes negros e negras não produzem divisões e correlatas hierarquias de poder a partir do discurso de autoafirmação racial. Eles visam tão somente chamar a atenção para o absurdo de tais hierarquias e estruturas. Isso tudo só é possível exatamente porque eles não têm poder sobre tais estruturas. Pierre Bourdieu é outro que lembra que alguém (um agente individual ou institucional) só consegue dividir ou produzir a divisão na medida em que possua poder ou autoridade.[x] Essa falta de poder e controle impede, por consequência, que eles produzam algum tipo de divisão social, ainda mais um tipo de divisão de poder que subjugue brancos e brancas. Insistir no contrário é tentar fazer pouco do argumento histórico.
Portanto, não dá para comparar o discurso racial do militante do movimento negro com o discurso do membro da elite branca, detentor de poder e privilegio.
Do contrário, é possível pensar que o discurso que nega o racismo, as desigualdades raciais, o discurso que exalta uma suposta "democracia racial" seja exatamente a fala que visa sacralizar determinadas estruturas de poder. Paradoxalmente, não deixa de ser curioso constatar que a mesma fala que denuncia um suposto perigo biologizante do discurso de afirmação de uma identidade negra, seja ela mesma um instrumento de naturalização de desigualdades e segregações; um instrumento que tem como pilar a negação das divisões sociais, dentre elas a racial. Para esse tipo de abordagem todo monopólio historicamente consolidado, que beneficia o segmento social localizado no topo da hierarquia, é fruto da evolução natural da sociedade. Daí a aversão tão virulenta à política de cotas.
E para terminar, nunca é demais lembrar: não foram os indivíduos negros e negras que inventaram a raça negra. Mas uma estrutura de poder de raízes europeias no contexto do Imperialismo do século XIX. Isso já diz muito sobre essa questão. Combater o legado de tal estrutura é o cerne dos embates que atravessam a discussão sobre cotas e o própria questão racial.



Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
AULETE, F.J. Caldas. Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza. Lisboa: Editora e Officinas Typographica e de Encadernacao, 1911.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996.
DAWKINS, Richard. “Race and creation”, 23 de outubro de 2004. Disponível em: http://www.prospectmagazine.co.uk/features/richard-dawkins-race-evolution-in-group.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FUNK, Charles E.; FUNK, Isaac K. Standard Dictionary of the english language. Chicago: Encyclopedia Britannica.
GAYA, Samuel Gili. Diccionario General Ilustrado de la Lengua Espanola. Barcelona: Publicaciones y Ediciones SPES, 1945.
GOODMAN, Alan. “Two Questions About Race”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Goodman/.
LEWONTIN, R.C., AGASSI, Alexander. “Confusions About Human Races”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Lewontin/.
MARKS, Jonathan. “The Realities of Races”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Marks/.
Michaelis. Dicionário da Lingua Portuguesa. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ra%C3%A7a. Acesso em: 20/07/2016.
ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabetique e analogique de la langue francaise. Paris: SNL, 1973. p. 1445.
SCHWARTSMAN, Hélio. “Controle racial”, In: Folha de S. Paulo, 10 de agosto de 2016, p. 6.







[i] GAYA, Samuel Gili. Diccionario General Ilustrado de la Lengua Espanola. Barcelona: Publicaciones y Ediciones SPES, 1945. p. 1183.

[ii] ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabetique e analogique de la langue francaise. Paris: SNL, 1973. p. 1445.

[iii] FUNK, Charles E.; FUNK, Isaac K. Standard Dictionary of the english language. Chicago: Encyclopedia Britannica, p. 1038.

[iv] Michaelis. Dicionário da Lingua Portuguesa. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ra%C3%A7a. Acesso em: 20/07/2016.

[v] Tal dimensão também se encontra assinalada em alguns dicionários de outras línguas. Invariavelmente o caráter moral é destacado como uma “qualidade”. Por ordem, vemos os exemplos destacados dos dicionários Italiano, Francês e Ingles:
a)      raza1 Del it. razza, y este de or. inc.; cf. ingl. y fr. race. 1. f. Casta o calidad del origen o linaje. 2. f. Cada uno de los grupos en que se subdividen algunas especies biológicas y cuyos caracteres diferenciales se perpetúan por herencia. 3. f. Calidad de algunas cosas, en relación con ciertas características que las definen. raza humana 1. f. humanidad (‖ género humano). de raza 1. loc. adj. Dicho de un animal: Que pertenece a una raza selecionada;
b)      éfinitions Expressions Synonymes Homonymes Population animale résultant, par sélection, de la subdivision d'une même espèce et possédant un certain nombre de caractères communs transmissibles d'une génération à la suivante. Catégorie de classement de l'espèce humaine selon des critères morphologiques ou culturels, sans aucune base scientifique et dont l'emploi est au fondement des divers racismes et de leurs pratiques. (Face à la diversité humaine, une classification sur les critères les plus immédiatement apparents [couleur de la peau surtout] a été mise en place et a prévalu tout au long du XIXe siècle. Les progrès de la génétique conduisent aujourd'hui à rejeter toute tentative de classification raciale chez les êtres humains.) Littéraire. Lignée familiale considérée dans sa continuité ; ensemble des ascendants ou des descendants d'un personnage ou d'un groupe humain : La race de David. Ensemble de personnes présentant des caractères communs (profession, comportement, etc.), et que l'on réunit dans une même catégorie : La race des gens honnêtes;
c)       A group of people sharing the same culture, history, language, etc.; an ethnic group: we Scots were a bloodthirsty race then More example sentences Synonyms The fact or condition of belonging to a racial division or group; the qualities or characteristics associated with this: people of mixed race More example sentences People of European origin, Asians, and people of mixed race enjoy the best standard of living. He wishes to claim that in this society sex is a more fundamental fact about people than race. People of mixed race are being excluded from society and face prejudice from both sides. Get more examples (...) A group of people descended from a common ancestor: a prince of the race of Solomon More example sentences; archaic Ancestry: two coursers of ethereal race




[vi] AULETE, F.J. Caldas. Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza. Lisboa: Editora e Officinas Typographica e de Encadernacao, 1911.

[vii] FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[viii] ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

[ix] SCHWARTSMAN, Helio. “Controle racial”, In: Folha de S. Paulo, 10 de agosto de 2016, p. 6.
E ao contrário do que se pode imaginar a literatura sobre o estudo do tema da raça é vasta e só tem crescido. Recomendo, a título introdutório, a leitura dos seguintes trabalhos: GOODMAN, Alan. “Two Questions About Race”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Goodman/; LEWONTIN, R.C., AGASSI, Alexander. “Confusions About Human Races”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Lewontin/; MARKS, Jonathan. “The Realities of Races”, In: http://raceandgenomics.ssrc.org/07 de junho de 2006. Disponível em: http://raceandgenomics.ssrc.org/Marks/; DAWKINS, Richard. “Race and creation”, 23 de outubro de 2004. Disponível em: http://www.prospectmagazine.co.uk/features/richard-dawkins-race-evolution-in-group.

[x] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996.

domingo, 5 de junho de 2016




Por Leonardo Soares, Historiador


Nunca antes a política se encontrou tão desgastada. Nunca o ato político foi tão mal visto, tão insistentemente associado a aspectos negativos da vida social. Chegou-se ao ponto em que candidatos a cargos políticos (seja de vereador de uma cidadezinha do sertão piauiense até o de presidente dos Estados Unidos) escolham como uma das plataformas de sua campanha política, falar mal e demonizar a política e os políticos. E muitas das vezes sendo bem sucedidos junto ao público eleitor.

De onde teria vindo tanta repulsa?

Uma breve consulta a diversos dicionários exemplifica bem esse mal-estar. É mais do que comum vermos nesses registros a palavra POLÍTICA figurar junto a companhias constrangedoras, para dizer o mínimo. Com exceção daquelas definições mais insossas, a palavra é associada a vários termos pejorativos.

A política é vista com desconfiança pelo cidadão; a política não é mais pensada e reconhecida como uma experiência da vida social cujo exercício cotidiano se volta para a satisfação das necessidades da população e da sua felicidade, o maior bem comum que possa existir.

Muito pelo contrário.

A política é vista pela ótica do ardil. O paradigma platônico (e por que não dizer, aristotélico também), da política como meio de satisfação da felicidade e da efetivação do reencontro do cidadão com a República (ou Cidade), virou letra morta. O tempo cuidou de transformar esse ideal de virtude do cidadão ateniense, em vestígio caricato de um tempo perdido, cuja existência é tão questionada como a nunca achada ilha de Atlântida.

Esse paradigma foi sendo implodido ao longo séculos, já sendo desidratado desde a assertiva de Santo Agostinho ("O poder corrompe"). Mas não deixa de ser curioso observarmos que mesmo na Idade Média o termo Política ainda se encontrasse revestido de certa áurea; em torno dele gravitavam uma série de conceitos e qualificativos, todos denotando aspectos positivos e mesmo elevados da vida social. É como se a palavra Política e todo um conjunto de expressões designando virtude fizessem parte de um mesmo sistema, como se a relação entre ambas fosse marcada pela complementariedade.

O "Vocabulario historico-cronológico do português medieval" nos fornece importantes indícios. Ao procurarmos pelo verbete Política, os trechos no qual a palavra está inserida revelam um convívio inusitado:

·      a qual virtude imperfeita he chamada politica, moral (...).

·      E menos compridoyro he aqueste benefficio em a política governança do mundo.

·      As forças, roubos e furtos e enganos que antre as outras naçõoes som estranhadas, ponidas e enjeitadas, antre estes som ávidas por costumes vertuosos, políticos e honestos.

Mesmo na primeira expressão, na verdade, uma indagação, a idéia de que uma "virtude imperfeita" possa ser classificada como "política" não pode ser mais importante do que o próprio fato (inusitado aos olhos de hoje) de que a política possa ser compreendida como uma virtude.

Como todos e todas sabemos, à política e aos políticos estão associados termos e expressões nada elogiosas atualmente.

Uma rápida passada nos dicionários nos revelam alguns lances curiosos. No Priberam Dicionário (http://www.priberam.pt), a maior parte das acepções destacam o conteúdo das relações institucionais entre entes estatais. O elemento societário e individual passava despercebido.
1. Ciência do governo das nações.
2. Arte de regular as relações de um Estado com os outros Estados.
3. Sistema particular de um governo.
4. Tratado de política.
5. [Figurado]  Modo de haver-    
    se, em assuntos particulares, a fim de obter o que se deseja.
6. Esperteza, finura, maquiavelismo.
7. .Cerimônia, cortesia, civilidade, urbanidade.


Aparecem ali, curtos e diretos, os significados mais usuais: da política como condução das coisas do Estado. A pouquíssima abrangência quando pensamos o que seria o significado da política para os atenienses do tempo de Aristóteles, salta aos olhos. Muitos aspectos passam a faltar nas definições atuais, e na medida em que faltam uma série de questões deixam de ser pensadas. Podemos continuar procurando. Mas é notório também que a definição de número “6” é uma das mais emblemáticas do pensamento geral sobre a política: quase que a expressão de um conjunto de ardis e ciladas a serviço de interesses escusos, próprias de agentes inescrupulosos.

O trecho abaixo foi extraído do Dicionário Caldas Aulete online (http://www.aulete.com.br/):
(po..ti.ca)
sf.
1. Arte e ciência da organização e administração de um Estado, uma sociedade, uma instituição etc.
2. O conjunto de fatos, processos, conceitos, instituições etc. que envolvem e regem a sociedade, o Estado e suas instituições, e o relacionamento entre eles.
3. O gerenciamento de uma dessas instituições ou do conjunto delas.
4. O conjunto de conceitos e a prática que orientam uma determinada forma, pré-escolhida, desse gerenciamento.
5. Fig. Habilidade para negociar e harmonizar interesses diferentes.
6. Habilidade de conduzir ou influenciar o governo pela organização partidária, opinião pública, conquista do eleitorado etc.
7. Atuação na disputa de cargos de governo ou nas relações partidárias.
8. Conjunto de princípios e opiniões de uma pessoa que constituem uma posição ideológica.
9. Fig. Esperteza, astúcia para obter alguma coisa.


Vejam que um verbete ligeiramente mais amplo que o anterior logra apresentar alguns aspectos importantes da política em suas relações. O termo política já figura cercada por palavras/conceitos como gerenciamentocargos e eleitorado. Palavras que dão bem a medida do crescente tecnificação não só da palavra, mas das próprias experiências nela antes consagradas. Termos/ideias que evocam um gradativo distanciamento, apartamento entre os ditames da administração (gerenciamento) do Estado e os genuínos interesses do corpo da sociedade.

E isso se confirma quando verificamos o significado da palavra político, no Dicionário Priberam, aquela mais diretamente a ela relacionada:

po·lí·ti·co
adjetivo
1. Relativo à política ou aos negócios públicos.
2. Delicado, urbano, cortês.
3. [Figurado]  Finório, astuto.
4. [Informal]  Indisposto com alguém.
substantivo masculino
5. Aquele que se entrega à política.
6. Estadista.


política passa a ser tarefa de categoria de especialistas, a dos políticos. E isso é uma concepção muito forte no chamado mundo ocidental.[i] Estamos falando de um mal-estar geral. Nada mais estranho à concepção da política como reconciliação, entre o ente civil e republicano do paradigma aristotélico. Onde a finalidade é a satisfação das necessidades vitais e culturais do conjunto dos cidadãos, para o qual deveria estar voltada a administração da República, e não as demandas da política de dominação de um Estado distante sobre a sociedade.

O contínuo afastamento cria um outro problema. Pois a demanda ao Estado (pelos bens que só esse é capaz de gerar) por parte da mesma sociedade também segue a sua marcha, ele se amplifica e se complexifica ao mesmo tempo.

Mas pode-se objetar que se tratam ainda de dicionários do século XX. Sim, e isso é correto. E o que se revela é um quadro profundamente desolador. O simples recuo no tempo não parece tornar as coisas melhores.

No Dicionário Brasileiro Globo Ilustrado, de 1979, é o que lemos sobre POLÍTICA:

Ciencia do governo dos povos; arte de governar um Estado e regular as relações com outros; princípios políticos; tratado de política; maneira hábil de agir em assuntos particulares a fim de obter o que se deseja; civilidade; cortesia; astúcia; artifício.


Nada de muito diferente do que passaríamos a ver nas últimas décadas. Porém o mais impressionante é observarmos o conteúdo das palavras relacionadas ao termo política ou político. É mais de uma dezena de palavras de alto teor pejorativo:

POLITICAGEM: Cortesia; astúcia; artifício.
POLITICALHA: O mesmo que POLITICAGEM.
POLITICALHÃO
POLITICALHEIRO
POLITICALHO
POLITICANTE
POLITICÃO: Grande político; político de fama (Empregado também em mau sentido)
POLITICASTRO
POLITICÓIDE
POLITICOTE: Político sem valor ou sem importância.
POLITIQUEIRO
POLITIQUETE: Mesmo de Politicote.
POLITIQUICE
POLITIQUINHO
POLITIQUISMO


Após tamanho destaque, diante de tal contexto semântico, até o siginificado de palavras como politização e politicar ficam seriamente comprometidas.

No Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, publicado primeiramente em 1943, depois de ver a palavra Político ser associada a “maquiavelismo”, encontramos como sinônimo de Politicagem: “A súcia dos políticos desavergonhados”.

Recuando radicalmente no tempo, nos deparamos com o Diccionario da Lingua Portugueza de Antonio Moraes, de 1789. Além de “arte de governar”, ele assim define o “Fazer política”:

Subordinar certos actos às conveniências do seu partido ou encaminhal-os no interesse da idea, que se deseja triumphante. Politica mesquinha, facciosa; a que tem por movel baixas paixões e interesses de corrilho, em opposição à dos nobres e levantados caracteres, que só se inspiram no bem da causa pública; Político de barrejo; a dos especuladores, que fazem da política um mercantilismo, um negocio de ganhar.

Sabemos também que as palavras não reinam incontestes no plano divino, como se apenas se alimentassem da abstração pura, sem nenhum contato com a realidade.

Reinhart Kosellek nos ensina que o sentido de um conceito encontra sustentação num determinado contexto histórico, o qual é atravessado por uma gama variada de processos sociais.
Somos tentados, então, a estabelecermos certas relações. O que nos obriga a precisar melhor esse tal contexto, a que deixemos mais claro sobre que processo é esse de que estamos falando.

Os verbetes dos dicionários demonstram, mais do que um problema de ordem moral, que as ambiguidades inscritas no conceito geral de política expressam uma verdadeira fratura, a quebra dolorosa dos liames entre o Estado e a Sociedade. Estamos diante da constatação de uma crescente separação e distanciamento entre esses dois entes.

Emerge assim a questão: como então pode a Sociedade chegar a esse Estado? Como ela pode reaver o direito ao exercício da política? Como ela pode obter as condições de viabilizar politicamente os meios de satisfação de seus interesses e objetivos?

Tal fenômeno é muito bem esboçado, em suas linhas gerais, por Max Weber em seu “A Política como Vocação”. Não por acaso ele centre a sua reflexão sobre política partindo da realidade do Estado. Mas não uma realidade qualquer.

Aliás, a centralidade do Estado em si não passa despercebido. Para que se entenda esse aspecto é preciso refletir o próprio processo que conduziu a isso. E é extremamente emblemático que Weber compare essa trajetória ao que conduziu ao processo de expropriação de meios de produção que conduziu à consolidação do Capitalismo.

Processos semelhantes, em quase tudo. Um de ordem econômica, outro de ordem econômica. E que em diversos momentos se cruzaram, fortalecendo um ao outro. E que tiveram como fundamento o uso, a organização e implementação da violência.

Assim como a expropriação dos pequenos produtores independentes, a formação do Estado se valeu extensivamente do uso da violência para promover a exproprição de pequenos “Estados”, príncipes, senhores feudais.

O uso político da violência foi a grande parteira do Estado Moderno. Ela o foi para que este pudesse se organizar em novas bases. Nesse sentido a centralidade não é o seu aspecto fundante, ele é resultado de um longo e exaustivo complexo de lutas, guerras e manobras – todas carregadas de violência – para que o Estado pudesse se constituir. E ele se consitui na medida em que ele fosse capaz de exercer o seu atributo específico na visão de Weber:  o monopólio exclusivo e legítimo da violência.

A legitimidade para tanto é fundamental. E é por esse caminho que se desdobra o restante da análise de Weber. Mas para o que é o nosso objetivo neste texto, é fundamental que frisemos esse aspecto: o Estado buscou – e consegui, de certa maneira -  conquistar o monopólio da violência -  e assim agindo e ao alcançar tal objetivo, ele foi se constituindo; porém não apenas isso: ao atuar nesses termos, ele não apenas se tornou violento ou tomou para si o exercício do monopólio da violência como objetivo permanente: o Estado Moderno acabou alterando indelevelmente a própria natureza da política. Nesse trecho abaixo, Weber delineia melhor essa consequência:

É claro que a força não é, certamente, o meio normal, nem o único, do Estado – ninguém o afirma – mas um meio específico ao Estado. Hoje, as relações entre o Estado e a violência são especialmente íntimas. No passado, as instituições mais variadas -  a partir do clã – conhecem o uso da força física como perfeitamente normal. Hoje, porém, temos de dizer que o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. Note-se que “território” é uma das características do Estado. Especificamente, no momento presente, o direito de usar a força física é atribuído a outras instituições ou pessoas apenas na medida em que o Estado o permite. O Estado é considerado como a única fonte do “direito” de usar a violência. Daí “política”, para nós, significar a participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder, seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado.(p. 55-6)

Não apenas a política do Estado para com outros entes e agentes, mas também a política pensada para a gestão e administração desse Estado não pode passar por cima desse fato fundamental: não se trata de qualquer Estado. O domínio sobre esse aparato ganha com isso uma série de peculiaridades. E o seu exercício mais ainda.

O poder sobre o Estado agora, para ser exercido e reconhecido, deve ter sempre em mente que se trata de uma organização voltada para o uso da força e da violência. A política desse Estado assim como a política no interior desse Estado (inclusive a política voltada para a sua conquista ou controle) passa a ter como finalidade primordial exercer o domínio – a partir e pelo Estado – das formas de distribuição, geração e circulação dos meios de poder e exercício legítimo da violência.

E o custo disso sabemos todos nós: esse Estado, essa verdadeira máquina montada para o uso da violência legítima, só pode se constituir – no bojo de todo o processo do qual falamos até aqui – ao mesmo tempo em que se alienou, afastou-se radicalmente da sociedade civil.

Não é por caso que -  e esse é o desdobramento que mais nos interessa, na verdade –para esse Estado, boa parte da organização e mobilização dessa violência tenha como alvo precisamente essa mesma Sociedade.

E esse afastamento entre os dois também é parte integrante da reflexão de Weber. Uma cisão que se revela permanente, mas não absoluta, irreconciliável. As relações ainda vigoram, mas extremamente restritas, limitadas, permanentemente policiadas. Mas assim como temos a consagração da ideia do monopólio legítimo da violência, passamos a ter que conviver com outra cristalização desse processo: o exercício quase monopolístico da política no interior do Estado por parte dos políticos profissionais.

Na verdade, a ideia da política como profissão, ou o fato que a sociedade tenha que recorrer, necessariamente, a representantes eleitos para “chegar” ao Estado não é mais do que um resultado natural desse Estado que foi se apartando e foi apartado da Sociedade.

E ao assim proceder foi possível que esse Estado estabelecesse para si objetivos que lhe são inerentes, que pouco ou nada dizem respeito à substância vital da sociedade.

A prioridade para esse tipo de Estado passa a ser as demandas e objetivos de poder de um aparato construído tendo por base o controle e dominação da Sociedade; que a domina e a controla sob a condição de poder exercer sobre ela a violência necessária e legítima.

Em pleno século XVII John Locke demonstrava grande lucidez quanto a esse fenômeno (Hobbes também, mas de outra forma). Em seu “Segundo tratado sobre o governo”, ao tentar definir o que seria o “estado de natureza” (que é o mesmo que o estado de igualdade), ele acaba fazendo uma contraposição ao “estado de guerra”, fundado na desigualdade, e que por isso mesmo, contribui para a emergência do Estado Moderno.

No [estado de natureza] é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguem tendo mais do que qualquer outro; nada havendo de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem, nascidas promiscuamente a todas as mesmas vantagens da natureza e o uso das mesmas faculdades, terão também de ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição.


Desigualdade essa vista por Locke (com profundo pesar) que é indissociável desse movimento de contínuo distanciamento frente à Sociedade. (É possível pensarmos até que ponto se tal distanciamento não é ele mesmo o mecanismo por excelência de instauração da relação de crescente desigualdade entre Estado e Sociedade.)

O que vimos, portanto, naqueles verbetes de dicionários não foram mais do que a constação, de um lado, dessa sepação fundante entre Estado (Moderno) e Sociedade, e, de outro, uma espécie de avalição dessa separação.

Tal avaliação encontra o seu meio de expressão nos termos que visam de certa maneira desqualificar a política e “os políticos”. A esperteza, a malandragem, a astúcia, o ardil, esse amplo conjunto de estigmas e acusações é ele mesmo uma leitura, ou, uma constatação desse verdadeiro “assaltao” não apenas do Estado, mas da própria Política por parte dos profissionais, essa categoria que se diferencia do homem e mulher comum. Um Estado (e Política) que para se modernizar tem que se rebaixar, em qualidade e em termos de princípios. Que faz da corrupção (inclusive de si mesmo) não algo acidental ao seu funcionamento, mas algo intrínseco. (“É preciso sujar as mãos para governar!” – eis o ditado do bom governante.)

Talvez Jean Jacques Rousseau tenha sido um dos primeiros, lá do século XVIII a buscar iluminar melhor a reflexão sobre esse problema. A crescente incongruência entre agentes investidos do poder do Estado (cada dia mais poderoso e mais rico, e distante do homem e mulher comum) e cidadãos era certamente o pano de fundo de observações como essa que segue. a dos especuladores, que fazem da política um mercantilismo, um negocio de ganhar. A política “dos especuladores, que fazem da política um mercantilismo, um negocio de ganhar”, alertada por Antonio Moraes da Silva também no século XVIII (como visto acima), quando incrustrada no Estado, só incrementava a sua capacidade de oprimir e tornar a Sociedade cada vez mais desigual. Rousseau prontamente advertia:

Desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da ruína. Se lhes for preciso combater, pagarão tropas e ficarão em casa. À força de preguiça e de dinheiro, terão, por fim, soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la.
É a confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse do ganho, é a frouxidão e o amor à comodidade que trocam os serviços pessoais pelo dinheiro. Cede-se uma parte do lucro, para aumentá-lo à vontade. Daí ouro, e logo tereis ferros. A palavra finança é uma palavra de escravos, não é conhecida na pólis. (Do Contrato Social, p. 112)


O alto grau de desqualificação que encontramos nesses verbetes não é somente uma tentativa de se desqualificar a política. O que se desqualifica é uma determinada política. A política sancionada por um determinado Estado. O que se visa, ao fim e ao cabo, é, também, uma determinada configuração da relação desse Estado com a Sociedade.

De certa maneira, o que se revela aqui é uma condenação da desitratação da política aristotélica, a política de inspiração ateniense, de comunhão, de reunião, que era da sociedade, pois que estava junto dela. De certa maneira, para exercer o controle sobre a Sociedade, foi necessário a esse Estado despojá-la dos meios de fazer política autonomamente, de maneira legítima. Essa passou a ter que ser atribuída por essa autoridade de nome Estado. Houve aqui um outro processo claro de expropriação. A expropriação dos meios de fazer política das mãos da Sociedade.

A desqualificação tem como alvo aquele processo. Não seria absurdo pensar até que ponto esses termos pejorativos são uma reação a esse verdadeiro processo de expropriação da política própria da Sociedade por parte do Estado.




[i] Tal significado também aparece em dicionários de outras línguas.

1 arte di governare uno Stato; insieme dei fini cui tende uno Stato e dei mezzi impiegati per raggiungerli
2 il snodo di governare
3 tutto ciò che riguarda la vita pubblica
4 in senso figurato abile e astuto comportamento per raggiungere un determinato fine

No Inglês:
political
adjective  po·lit·i·cal \pə-ˈli-ti-kəl\
Simple Definition of political
: of or relating to politics or government
: interested in or active in politics
: involving, concerned with, or accused of acts against a government

No Francês:
 • Ensemble des options prises collectivement ou individuellement par les gouvernants d'un État dans quelque domaine que s'exerce leur autorité (domaine législatif, économique ou social, relations extérieures) : La politique économique de la France.
• Méthode particulière de gouvernement, manière de gouverner : Politique libérale, autoritaire.
• Moyens mis en œuvre dans certains domaines par le gouvernement : Politique de l'emploi, des prix.
• Manière concertée d'agir, de conduire une affaire : La politique commerciale de la maison.
• Manière prudente, fine, avisée d'agir : Ménager quelqu'un par pure politique.

No Espanhol:
POLITICO
adj. De la doctrina o actividad política o relativo a ellas: hizo un discurso político.
Se dice de la persona que interviene en la política de un Estado, comunidad, región, etc. También s.: la mayoría de la gente no cree a los políticos.
Hábil para tratar a la gente o dirigir un asunto: hay que ser muy político para llevar a cabo este proyecto sin ofender a ninguno de los afectados.
Aplicado a un nombre de parentesco por consanguinidad, denota el correspondiente por afinidad: padre político (suegro); hermano político (cuñado); hijo político (yerno); hija política (nuera).
f. Arte, doctrina u opinión referente al gobierno de los Estados, comunidades, regiones, etc.: me interesa la política porque me gusta estar informado de cómo se dirige el país.
Actividad de las personas que gobiernan o aspiran a regir los asuntos públicos: se ha metido en política.
Técnica y métodos con que se conduce un asunto: el jefe ha adoptado una política de mano dura.
Habilidad para tratar con la gente o dirigir un asunto: habrá que conducir este asunto con mucha política.
Orientación, directriz: la política de una empresa.