Leonardo Soares dos Santos
Antes de
procurar analisar o tema das políticas públicas, tal como elas vieram sendo
debatidas, implementadas, sabotadas, negadas ou adiadas ao longo da história
republicana do Brasil, quero convidá-los para um interessante exercício, também
de teor histórico. Mas que não se fundamenta – como faremos adiante – em
aspectos concretos, fatos históricos, relações de força ou enfrentamento entre
agentes sociais; partimos, nesse momento, do emaranhado de palavras, de alguns conceitos referentes à temática.
Parte-se
do que é supostamente o mais óbvio. Por que não verificarmos as idas e vindas dos
termos envolvidos ou que transitam ali próximos da Política Pública?
* * *
Quando
instados a responder em que pensamos quando ouvimos ou lemos o termo Política Pública, um conjunto bem
preciso de noções a ele parece estar associado. Política Pública é invariavelmente pensada como algo que se volta
não para uma pessoa em particular, mas para a população como um todo, ou para
parcela expressiva da sociedade – ela é uma medida de caráter eminentemente
coletivo; mas não é qualquer parcela: ela é em geral concebida para os
segmentos mais pobres ou vulneráveis; ela não é formulada por uma empresa ou
por uma pessoa que represente a “iniciativa privada”: ela é uma atribuição
exclusiva do Estado.
Este
último aspecto, alem do mais óbvio, parece ser o elemento fundamental da
Política Pública: ele é uma iniciativa gerada a partir da esfera estatal. Decorrendo
daí toda a sua legitimidade e reconhecimento enquanto um instrumento de caráter
coletivo voltado para a satisfação de demandas sociais.
Deveríamos
pensar mais sobre esse aspecto. Independente da maneira, se certo ou errado,
qualquer pensamento ou raciocínio relativo ao tema da Política Pública, passará
por algum momento pela questão do Estado. Ou, formulando de outra forma: é
quase impossível pensar em política pública, sem pensar a sua relação com o
Estado. Pensar o tema implica em levantar como problema a forma de atuação do Estado sobre a Sociedade.
Talvez
ainda se possa formular a questão de outra maneira: até que ponto o Estado –
por uma série de razões históricas – nos impede de pensar a política pública de
outra forma? Como o nosso pensamento sobre o tema é determinado por ele, o Estado?
E o mais importante: o que tal influência, de tipo gravitacional, do Estado nos
impede de pensar sobre a política pública: o que se pretende - na medida em que
se determina o que devemos pensar – que não pensemos?
Ora,
talvez não haja melhor forma em se começar a pensar em questões tão abrangentes
e complexas, partindo de um exercício talvez básico, que consiste em se
perguntar: o que é isso que chamamos de Estado? O que é essa palavra? Quais os
seus significados?
No
Dicionário da Língua Portuguesa, os atributos apontados acima são nele destacados.
Mas outros também. Vejamos o que nos diz o Dicionário Michaellis:
“es.ta.do
sm (lat statu) 1 Modo de ser ou estar. 2 Condição, disposição. 3 Modo de existir na sociedade; situação. 4 Situação em que se acha uma pessoa. 5 Fís Maneira de ser que a matéria ponderável apresenta: Estado sólido, líquido, gasoso. 6 Posição social; profissão. 7 Ostentação, magnificência. 8 Registro. 9 Inventário. 10 Nação politicamente organizada por leis próprias. 11 Terras ou países sujeitos à mesma autoridade ou jurisdição. 12 Conjunto de poderes políticos de uma nação. 13 Divisão territorial de certos países, como o Brasil, os Estados Unidos. E. autoritário: o que reclama para si poderes absolutos. E. civil: situação jurídica de uma pessoa dentro da família e da sociedade, resultante de filiação, nascimento, sexo etc. (casado, solteiro, viúvo, filho legítimo, filho natural etc.). E. crítico: a) aproximação de um organismo ou mecanismo do limite do seu normal funcionamento; b) Quím: estado atingível por toda substância pura estável, no qual a fase líquida e a vaporosa têm a mesma densidade; também chamado estado limite. E. da alma: disposição particular das faculdades mentais. E. da atmosfera: aparência do tempo (chuvoso etc.). E. da Cidade do Vaticano: pequena superfície territorial independente, onde a Santa Sé tem sua sede em Roma. E. da temperatura:maior ou menor grau de calor. E. de agregação: uma das três ou mais formas ou estados fundamentais da matéria que são comumente consideradas como incluindo as formas sólida, líquida e gasosa e, às vezes, outras, como a coloidal.E. de coma: estado mórbido em que o cérebro perde completa ou incompletamente a sua atividade funcional. E. de comando, Inform: estado de um modem que indica que ele está pronto para aceitar comandos. E. de conexão, Inform: estado de um modem que está tranferindo dados por uma linha de comunicação. E. de espera, Inform: estado do computador, no qual um programa solicita uma entrada ou sinal antes de continuar a execução. E. de graça: a) o de inocência pura, em que foram criados Adão e Eva; b) o de inocência batismal; c) estado da alma reconciliada. E. de guerra: a) estado caracterizado pela existência real de hostilidades armadas entre nações, independente de declaração de guerra formal de uma das potências em conflito; b) estado legal que surge pela declaração formal de guerra, independente da ocorrência de hostilidades armadas e cujo fim tem de ser proclamado por uma declaração semelhante; c) período de tempo durante o qual está em efeito esse estado. E. de oxidação: grau de oxidação de um elemento ou átomo (como em um composto), comumente expresso por um número positivo ou negativo que representa a carga iônica ou efetiva do elemento ou átomo. E. de paz: natureza das relações não hostis entre duas ou mais nações. E. de sítio: prevenção armada, não só em ocasião de guerra, mas também de paz, desde que haja receio de revolta, atentado ou dissensão intestina; suspensão das leis ordinárias de um país e sua sujeição temporária a um regime militar, semelhante ao que se exerce em praça de guerra sitiada. E. do céu: a) aspecto do céu em relação à qualidade das nuvens; b) posição relativa dos astros entre si num momento determinado. E. do tempo: estado da atmosfera. E. gasoso: estado particular dos corpos tornados em gás. E. higrométrico do ar: quantidade maior ou menor de vapor de água que o ar contém. E. imperialista: o que antepõe suas ambições a suas presentes necessidades, aos direitos das demais nações etc. E. interessante: gravidez, prenhez (diz-se da mulher). E. líquido: o que é próprio dos corpos líquidos. E.-maior: a) corporação de oficiais militares especializados que não comandam diretamente, mas que têm a seu cargo tudo o que diz respeito à estratégia; b) corporação de oficiais de um regimento, batalhão etc.; c) conjunto das pessoas mais notáveis de um grupo; d) cortejo de uma personalidade importante. E. sólido: o que é próprio dos corpos sólidos. E. totalitário: novo tipo de regime político, em que há um só partido, que se confunde com o próprio Estado, personificado no chefe supremo do governo, em cujas mãos se concentram todos os poderes e a chefia do partido. Homem de estado: estadista. Mudar de estado ou tomar estado: casar-se. Os três estados: o clero, a nobreza e o povo. Sem estado de espera, Inform: diz-se de um dispositivo, normalmente um processador ou chip de memória, que é tão veloz quanto os outros componentes de um computador.
Termo
abrangente, cujos sentidos possíveis vão da física até à informática (talvez
esse o seu sentido mais recentemente consagrado pela língua). Pudera, o seu
sentido latu “Modo de ser ou estar” está referido à
própria questão da existência.
Mas claro, o que nos interessa são os sentidos
mais precisos, os supostamente mais concretos. Como os expressos nas acepções
indicadas entre os números 10 e 13. O Estado como “Nação politicamente organizada por leis
próprias” é a que diríamos ser de pleno domínio do senso comum. É a definição
mais vulgarmente difundida: é o que está implícito quando falamos em “Estado
brasileiro”, “Estado alemão”, “Estado chinês” ou “Estado português”.
Mas o
ítem 12, “Conjunto de poderes políticos de uma nação”,
cumpre importante papel, pois indica que mais do que uma porção de território
ou um espaço administrativo demarcado, o Estado corporifica a própria estrutura
administrativa, responsável pelo domínio e condução de um determinado
território.
Vejamos outros exemplos. O verbete Estado é
extremamente detalhado no exemplo espanhol:
estado
Del lat. status.
1. m. Situación en que se encuentra alguien o algo, y en especial cada uno de
sus sucesivos modos de ser o estar. 2. m. Cada uno de los estamentos en que se consideraba dividido el cuerpo social; p.
ej., el ecle-siástico, el nobiliario, el plebeyo,etc.
3. m. Clase o condición a la cual está sujeta la vida de cada uno.
5. m. País soberano, reconocido como tal en el orden internacional, asentado en un territorio determinado y dotado de órganos de
gobierno propios.
6. m. Forma de organización política, dotada de poder soberano e independiente, que integra la población de un territorio.
7. m. Conjunto de los poderes y órganos de gobierno de un país soberano.
8. m. En ciertos países organizados como federación, cada uno de los territorios autónomos que la compo-nen.
9. m. Resumen por partidas generales que resulta de las relaciones hechas al por menor. Estado de las ren
-tas del vecindario, del Ejército.
10. m. Medida longitudinal tomada de la estatura regular del hombre, que se usaba para apreciar alturas o profundidades, y solíacalcularse en siete pies.
11. m. Medida de superficie que tenía 49 pies cuadrados.
12. m. Manutención que solía dar el rey en ciertos lugares y ocasiones a su comitiva.
13. m. Sitio en que se servía la manutención que daba el rey a su comitiva.
14. m. Esgr. Disposición y figura en que queda el cuerpo después de haber herido, reparado o desviado la espada del contrario.
15. m. Fís. Cada una de las formas en que se presenta un cuerpo según la agregación de sus moléculas. Es-tado sólido, líquido,gaseoso.
16. m. desus. Casa de comidas de más categoría que el bodegón.
17. m. desus. Séquito, corte, acompañamiento.
estado absoluto
1. m. En los cronómetros o relojes marinos, variación respecto de la hora en el meridiano de referencia.
Estado asociado
1. m. Estado que, con cierta autonomía, participa en las estructuras de gobierno de otro país. U. especialmente hablando del
Estado Libre Asociado de Puerto
Rico.
Estado autonómico
1. m. En España, Estado organizado territorialmente en comunidades autónomas.
España es un Es-tado autonómico según la
Constitución de 1978.
Estado de derecho
1. m. Régimen propio de las sociedades democráticas en el que la Constitución garantiza la libertad, los
derechos fundamentales, laseparación de poderes, el principio de legalidad y la protección judicial frente al uso arbitrario del poder.
estado de
emergencia
1. m. Situación oficialmente declarada de grave peligro por conflictos sociales, catástrofes naturales u otras razones.
estado de
excepción
1. m. estado que declara el Gobierno en el supuesto de perturbación grave del orden y que implica la sus-pensión de ciertasgarantías constitucionales.
estado de
gracia
1. m. estado de inspiración, de lucidez o de acierto en que se encuentra alguien.
2. m. Rel. estado de quien está limpio de pecado.
estado de
guerra
2. m. estado de una población en tiempo de guerra, cuando la autoridad civil resigna sus funciones en la
autoridad militar.
estado de
prevención
1. m. La primera y menos grave de las situaciones anormales reguladas por la legislación de orden públi-co.
estado de
sitio
1. m. estado que, ante una agresión a la integridad del Estado, se decreta otorgando poderes excepciona-les a la autoridad militar.
Além
das acepções já vistas no caso da língua portuguesa, o termo Estado na sua
dimensão político-administrativa é tão central, que parece fagocitar o termo
nas suas outras dimensões: o Estado (ente jurídico) tem ele mesmo “modos de ser
o estar”: Estado absoluto, Estado asociado, Estado
autonómico, Estado de derecho, Estado de
emergencia, Estado de
excepción, Estado de
guerra, Estado de sitio e
Estado de prevención.
O registro da língua
inglesa, via Cambridge Dictionary,
confirma o esperado:
US /steɪt/
to express information clearly and carefully: His will states the property is to be sold.
Please state your preference.
US /steɪt/
politics & government
a condition or way of being: The stable was preserved in its original state.Your room is in a terrible state. It's
a sad state of affairs (= a bad situation) when our rivers are so endangered.
politics & government
one of the political units that some countries, such as the US, are divided into: New York State the State of
Arizona
politics & government
the States A state is also a country or its government: the member states of
the United Nations
Poderíamos
apresentar outros exemplos. Mas é possível que eles confirmem o que já havíamos
assinalado: que um país ou Nação é sinônimo de Estado.
Mas
sabe-se também que nem sempre foi assim. A palavra Estado, ao menos a qur
figura nas línguas ocidentais, existe desde os tempos mais remotos. Quanto a
isso não há muita dificuldade em reconhecer, já que possui acepções tão amplas,
até mesmo existenciais. Mas a sua dimensão político-jurídica-administrativa,
tendo em conta a escala da longuíssima duração, é bastante recente na história
das civilizações.
No
“Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau,
reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de
Janeiro”, originalmente publicado em 1728, sob o título “Vocabulario Portuguez
& Latino”, a palavra Estado assim aparece gravada:
O
ato de estar, demora em algum lugar.
A
situação, e relações fizicas, ou moraes, a posição, em que se acha alguma
coisa, ou pessoa, (exemplo) as fábricas estão em mao estado, [...], estado de
cidadão, de cativo, de estrangeiro.
Classe
de Cidadão, o Estado da Nobreza, do Clero, do Povo. [...]
Estados
da Nação.
A
equipagem, cortejo, cavalgaduras, coches, pagens, e mais adherentes da pompa.
As
terras de algum Senhor.
Os
dicionários antigos da Língua Francesa assinalam o mesmo fenômeno. Pelo menos
até fins do século XVIII, Estado em sua dimensão política designava no máximo o
que chamamos hoje de classes, eram os Estados da Nação (Nobreza, Clero e
Terceiro-Estado).
A
idéia do Estado como sinônimo e Nação é algo que se consolida apenas pra lá de
meados do século XIX.
O
Estado como unidade política ou entidade jurídica, ou ainda, enquanto um
aparato administrativo era impensável para Aristóteles. Melhor seria afirmar:
era impossível de ser pensado, pois não havia elementos que sugerissem sua existência.
No tempo do filósofo grego, pouco mais de 300 séculos antes de Cristo, o que
havia eram cidades, governo gerido pelos cidadãos. Logo nas primeiras linhas de
A Política, Aristóteles destaca: “Sabemos que toda cidade é uma espécie de
associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o
homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem”. (p. 12)
Não
existe ainda o Estado como abstração e, em paralelo, como uma instância
distantes dos cidadãos, como um ente distinto, cujas fronteiras, que mais
afastam do que separam em relação à Sociedade (civil) estivessem exemplarmente
demarcadas. O governo das cidades não é pensado para os cidadãos. Ele – o governo – só faz sentido, e só garante a
sua legitimidade, se for feito com e por eles.
Mais
adiante, Aristóteles reforça esse entendimento ao destacar
Devemos
primeiramente estabelecer um princípio que sirva de base a este estudo. É
preciso que todos os cidadãos participem em comum de tudo ou nada, de certas
coisas e não de outras. De nada participar é impossível, sem dúvida; porque a
sociedade política é uma espécie de comunidade. O solo pelo menos deve ser
comum a todos, a unidade de lugar formando a unidade de cidade, e a cidade
pertencendo em comum a todos os cidadãos. (p. 28)
E
em diversos outros momentos da obra, Aristóteles volta a destacar a relação
orgânica entre as estruturas admnistrativas da República e a sociedade civil: “O
Estado se compõe de uma multidao de individuos.” (p. 32)
Aqui,
no contexto de Atenas, Sociedade Civil
e Sociedade Política não representam
polos irreconciliáveis, duas instâncias distintas da realidade social;
transitados por espécies diferentes de pessoas. Aqui, o adágio Agostiniano “O
Poder corrompe” seria ele mesmo objeto de repulsa. Nada mais estranho ao habitus ateniense. Nesse contexto
cultural, palavras como politicagem, politiqueiro e político (no sentido da
malandragem, do sujeito que faz média, interesseiro, que não fala o que
realmente sente etc) ainda não possuem razão para existir como tais. Isso só
será possível num outro contexto, onde o sujeito para fazer política deve
forçosamente se afastar do povo, se alienar da realidade empírica da sociedade
civil, adentrar a lógica das coisas do Estado, que por sua vez, é distinto, é
estranho (ou deveria ser) às paixões, às vulgaridades e à irracionalidade
própria da turba dos cidadãos.
Nesse
trecho Aristóteles praticamente desenha a arquitetura de poder da democracia
ateniense. O conceito de soberania quase salta do paragrafo (talvez isso explique
o impacto exercido muitos séculos depois em Rousseau, quando da elaboração do
“Contrato Social”):
A
constituição de um Estado é a organização regular de todas as magistraturas,
principalmente da magistratura que é senhora e soberana de tudo. Em toda parte
o governo do Estado é soberano. A própria constituição é soberano. (p.
58)
Mesmo
em Baruch Spinoza, caminhando para o fim do XVII, a noção de Estado ainda se
confunde com a idéia de Soberano, aquele que governa consagrado pelo direito
natural, e que paira acima das paixões e interesses particulares dos homens.
De
todo modo, aqui já vemos com mais nitidez – algo já bastante visível em
Maquiavel e mais ainda em Hobbes – a ideia de Estado como algo que possuíria
uma razão própria, necessariamente distinta do cidadão ou súdito em particular.
Em seu “Tratado Político”, ele comenta:
(...)
o Estado mais poderoso e o mais senhor de si é aquele que é fundado e dirigido
pela razão.
A
condição de um Estado determina-se, facilmente, por sua relação com o fim geral
do Estado, que é a paz e a segurança da vida. Por conseguinte, o melhor Estado
é aquele em que os homens passam a sua vida na concórdia e onde os seus
direitos não recebam nenhum atentado.
E o mais importante, não apenas em
relação a Spinoza, mas a vários intelectuais que pensarão durante quase dois
séculos (XVIII e XIX) a gestação desse notável fenômeno histórico, o
engendramento dos Estados-Nações: o Estado é algo que se estrutura, se organiza
e se pensa por fora da Sociedade Civil. Tratam-se de dois entes interligados,
mas distintos.
Decerto que no filósofo holandês, a
chave aristotélica ainda se manifesta – e seguirá sendo consagrada, de maneiras
distintas, em Rousseau e em John Locke, por exemplo –, segundo a qual os
individuos deveriam participar dos negócios da República, sendo tal costume
prova da vitalidade da democracia de um Estado: todos podem atuar junto à
administração (p. 125).
Mas, por outro lado, uma certa ambiguidade
encontra meios de se insinuar. O direito de membros da Sociedade Civil participarem
do governo do Estado não deriva de uma igualdade entre as duas instâncias. E -
é importante anotar – não se tratam de duas instâncias apenas distintas. Há uma
desigualdade fundamental entre elas. Há uma relação de poder que atravessa esse
esquerma. Nele, o Estado figura como acima daquela. Ele é mais importante; é
superior.
O holandês já deixa entrever a
assimetria entre eles em trechos como o que se segue:
Não
podemos tampouco conceber que seja permitido cada indivíduo, interpretar os
decretos e as leis do Estado como entenda. Se, com efeito, concedeu-se-lhe esse
direito, será, então, o seu próprio juiz, pois que poderá, sem esforço,
revestir suas ações de aparência legal, e, por conseguinte, viver inteiramente
a seu bel-prazer o que é absurdo.
E nesse curto registro de Spinoza podemos
notar o apontamento de um aspecto crucial desse Estado, nesse sentido novo, do
Estado que se confunde como governo de um território, e que se transfigura em
mecanismos e esferas administrativas de controle, fiscalização e produção: ele
começa a ser pensado tendo como fim precípuo, junto com a manutenção da
integridade da Nação (a soberania territorial), o governo da vida, a gestão e
certa imposição de modos de existir aos homens e mulheres que compõe a
Sociedade sob sua jurisdição.
Michel Foucault menciona isso em seu
“Dois ensaios sobre o sujeito e o poder”. O Estado que surge no século XVIII
nasce determinado em controlar a vida de cada indivíduo, não apenas vigiando-o
ou punindo-o, mas determinando formas da sua própria subjetividade. Um dos
principais meios para tanto será o tipo de governo que ele então implementará
sobre os cidadãos: altamente apoiado na racionalidade (a razão burocrática
weberiana) e de teor marcadamente totalitário, pelo qual busca regular as
inúmeras esferas da vida cotidiana, não apenas a econômica (talvez a principal,
no sentido de ser a mais visada) mas também as esferas da cultura,
religiosidade, formas de cura, pensamento, felicidade, desejo, amor etc.
Nesse sentido pensar as Políticas
Públicas, que são mais explicitamente formuladas e difundidas no século XX
tenha muito a ver com esse pano de fundo. É possível até mesmo pensá-las como
um desdobramento desse Estado-Nação na sua ênfase em regular e controlar a vida
dos cidadãos.
Estamos falando agora de um Estado
autônomo em relação à Sociedade Civil,
num lado, e no outro, claro, a própria cisão entre Sociedade Civil e Sociedade
Política. Os membros de cada uma são distintos. E os da Sociedade Política são aqueles mais
próximos do Estado. Desdobramento fundamental disso tudo: a cisão, o verdadeiro
abismo entre ambos leva a formulação da tese da transferência de direitos dos
indivíduos para o Estado ou, em certo sentido, para aqueles que os representam
na esfera própria da Sociedade Política. A problemática na qual entrará de
cabeça a Teoria Política dos séculos XVII e XVIII (Qual a fonte de soberania do
Estado? O quanto da sua liberdade o indivíduo cede ao poder do Soberano? Ele
cede permanentemente ou não?), a relação entre Estado e Sociedade, não é mais
do que a tentativa de se dar conta dessa cisão, fundamental do mundo moderno.
Na verdade, um fundamento do próprio Estado Moderno.
É possível pensar a Política Pùblica não
apenas como expressão de um Estado preocupado em resolver demandas e anseios da
Sociedade. Aceitar a questão dessa maneira, sem problematizá-la pode ser isso
sim um problema, na medida em que incorpora sem questionamentos uma formulação
que mais parece um artigo de fé da ideologia desse Estado moderno.
Por outro lado, a Política Pública pode
ser vista também como um mecanismo de poder dentro desse grande objetivo
estrategico que é o domínio e regulação da Sociedade por parte do Estado. Até
que ponto ela é uma expressão necessária desse Estado que precisa impor normas
e regras aos cidadãos, na medida em que estabelece os contornos e o jogo de
obrigações e deveres a serem seguidos por eles, na medida em que eles
reconheçam o poder e o controle do Estado, reconhecendo nesse a legitimidade de
formular e implementar políticas destinadas (ao menos teoricamente e oficialmente)
ao seu bem-estar, desenvolvimento humano e felicidade.
A Política Pública como fundamento de
poder e legitimidade do Estado precisa ser colocada. A leitura de alguns
autores pode ser bem útil a esse respeito.
Mas antes, outro problema precisaria ser
melhor examinado: se estamos falando de Política Pública, faz-se necessário
observarmos por meio do registro histórico – mesmo que sumario – a evolução
dessa palavra-chave, desse termo óbvio, mas bastante obscuro: falo da Política, a palavra.
Referências
Bibliográficas:
ARISTÓTELES.
A Política. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.
Dicionário
Online Michaellis de Língua Portuguesa.
Dicionário
Online Cambridge.
Dicionários
online de francês e italiano.
FOUCAULT,
Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SPINOZA.
Tratado Político. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.