Leonardo Soares
dos Santos
Professor de
História da UFF/Campos
É simplesmente
inacreditável um volume tão concentrado de deboche, falta de bom senso e
vulgaridade num texto tão pequeno. Mas Carlos Alberto Sardenberg consegue
realizar tal proeza toda semana - e isso há mais de uma década, e tendo o
jornal da família Marinho como palco. Havemos de reconhecer: nem se um
economista dos mais ignorantes, limitados e medíocres quisesse, ele conseguiria
escrever panfletos neoliberais tão esdrúxulos e repugnantes quando o do sr.
Sardenberg.
Em verdade, custo a
acreditar que esse senhor ainda insista em se apresentar como algo que não
humorista de comédia pastelão.
Em mais uma
demonstração de completo desprezo pela inteligência alheia e pelo respeito
mesmo que mínimo pela realidade dos fatos, o dublê de economista escreve mais
um dos seus horripilantes panegíricos, onde costumeiramente tudo que diga respeito
a números, fatos, dados, estatísticas e demais artefatos da esfera empírica e
objetiva são impiedosamente surrados.
No texto de alcunha “público
e privado”, Sardenberg procura novamente testar a resistência de nossos
neurônios a argumentos de caráter tão simplório.
O autor parte – como sempre
- de uma situação bastante pontual para depois construir as suas absurdas
generalizações sobre Estado, Mercado e sociedade, para no final sempre coroar o
seu discurso com a autêntica lição de moral – tudo acaba mal se começa sem
Mercado e mais Mercado!
E, dessa vez, tudo
começa pela sua brilhante constatação de que não “existe produção de prótese
ortopédica no Brasil. Pode-se importar, mas é caro. Uma prótese de membro
inferior, por exemplo, sai por uns R$ 4 mil, boa parte disso em impostos. Uma
enorme dificuldade, cuja solução já existe. Dois jovens brasileiros, Lucas
Strasburg e Eduardo Trierweileir, de Novo Hamburgo (RS), inventaram o Revo
Foot, prótese de perna e pé, feita de plástico reciclado, invento premiado em
feira mundial, e que deve custar em torno de R$ 200, antes dos impostos, claro.
Mas não conseguiram ir além do protótipo: não há no Brasil um sistema de
certificação para permitir a produção comercial.”
Bem, e daí? Aguardemos,
pois o liberal de (de)formação técnica em jornalismo se atira em outro caso
isolado:
Voemos
do Sul para o município de Ibimirim (PE), mais exatamente para o Sítio
Frutuoso, onde o agricultor José Gabriel Bezerra, tem uma próspera lavoura de
milho, melancia e feijão, num ambiente de seca e perdas. A propriedade é
irrigada. Sabem como? Um poço que ele construiu com seu próprio dinheiro,
cansado de esperar pelas prometidas obras públicas.
Agora vamos à moral da estória
dos cientistas de Novo Hamburgo:
Os
jovens gaúchos desenvolvem sua idéia há mais de seis anos, com objetivos
claramente sociais: produzir algo nacional, bom e barato Era inicialmente um
trabalho de fim de curso, da Escola Técnica Liberato, pública. E uma ousadia:
trocar fibra de carbono por plástico reciclado? Parecia piada. Pois chegaram a
uma prótese testada e retestada(sic) em diversos laboratórios universitários e
privados. Experimentaram em um parente – prótese do pé esquerdo – que está
muito satisfeito. Batizaram de Revo Foot e tiraram o segundo lugar num concurso
do Massachussets Institute Of Technology para inovadores globais com menos de
35 anos.
Toca
produzir a coisa no Brasil, claro. Não pode. Precisa certificar. OK, como faz?
Não faz. Os órgãos publicos não têm normas, muito menos máquinas para testar
essas próteses. Sabem o que Lucas e Eduardo resolveram fazer? Estão tentando
produzir a primeira máquina brasileira de certificação de próteses, junto com
normas e demais mecanismos.
É
louvável a garra dos rapazes, mas está na cara que essa não é mais função
deles. É do governo, do setor publico. Devia ser…
Não se discute aqui que
os governos deveriam investir mais e melhor na educação e na área de ciência e
tecnologia, coisa que ele nunca fez, senão de maneira esparsa e fragmentada.
Agora, o discurso de que os meninos gaúchos são frustrados em seu
empreendimento por culpa única e exclusiva do Estado é não apenas problemático
como um verdadeiro engodo. Para completar, o autor omite – de maneira
proposital – algumas informações básicas, como a de que próteses e órteses são
distribuídas gratuitamente pelo SUS. De acordo com o Portal Brasil (http://www.brasil.gov.br/saude/2012/04/orteses-e-proteses),
o
Sistema Único de Saúde (SUS) oferece gratuitamente
equipamentos sensoriais e de locomoção ao brasileiro com deficiência. Estão à
disposição dos pacientes dezenas de tipos de próteses (utilizadas como
substitutas de membros e articulações do corpo), órteses (aparelhos que servem
para alinhar ou regular determinadas partes do corpo) e aparelhos para auxiliar
no deslocamento do dia a dia.
O SUS oferece atendimento em diversas especialidades como
oftalmologia (com a oferta de lupas, lentes e óculos especiais para
determinadas enfermidades), otorrinolaringologia (com aparelhos auditivos e de
amplificação da voz) e ortopedia (com cadeiras de rodas, muletas, palmilhas e
próteses de membros inferiores e superiores), entre outras.
O atendimento ao cidadão com deficiência também inclui o
trabalho de reabilitação e o acompanhamento de sua evolução com a realização de
exames periódicos. Os pacientes que necessitam de algum tipo de equipamento de
auxílio para a sua condição médica é encaminhado para os centros de referência
ou hospitais com a devida especialização em suas regiões ligados ao SUS.
Mas claro, por que não
omitir isso e reforçar entre os incautos a idéia de que o Estado é um ente
nefasto, decrépito, sórdido e malévolo? Que ele impede o pobre do indivíduo de
desenvolver suas potencialidades, de ser feliz e realizado, como quer o
Mercado, e até de ter uma prótese para poder andar?
Nada mais repulsivo,
mas que é insistentemente difundido pela propaganda maniqueísta e insidiosa dos
neoliberais. E é claro que a propaganda falaciosa tem que ser assim construída
para no final tentar enganar a sociedade com a clássica solução: “ – Entrega para
o Mercado que ele resolve!”
Sendo que hoje o
principal responsável pela calamitosa situação do campo da ciência no país é
exatamente da iniciativa privada, que atua com seus lobbys para a manutenção de
monopólios. Deixa de pagar os impostos devidos, que boicota todas as votações
no Congresso que tentam direcionar maiores verbas para a educação. E ainda há
outro caso revelador, que não encaixa bem na propaganda ideológica neoliberal:
o próprio Ciência sem fronteiras, um
programa do governo federal que visa o intercâmbio de alunos universitários no
exterior, foi ostensivamente boicotado pela iniciativa privada, que não cumpriu
nem com 10% das bolsas que havia acordado com o governo. E agora Sardenberg?
Mas ele não desiste em
sua ação missionária, como típico militante da seita neoliberal, Sardenberg
sobe de novo à montanha e reinicia seus sermões moralistas:
A
história do agricultor de Ibimirim tem o mesmo conteúdo. Ele tocava lá
seu sítio, sempre batalhando com a falta de água. Ouviu muitas promessas e
anúncios de instalação de poços e cisternas. Como mostra a reportagem de O
Globo, até que muitos poços foram perfurados. Mas, num falta a energia elétrica
para bombear a água. No outro, falta a canalização para distribuir. Mais
adiante, a população local não pode utilizar a água, pois é levada para áreas
mais populosas.
Sabe
de uma coisa? –pensou José Gabriel Bezerra. “A gente tem de resolver”. Mudou-se
para São Paulo, arrumou emprego na construção civil, juntou R$ 30 mil, voltou
para Ibimirim e aplicou tudo num poço de 150 metros. Resolvido.
Mas,
cuidado. O governo finalmente construiu ali na região cinco adutoras profundas.
O agricultor tem medo que essas puxem a água do seu poço. Era só o que faltava.
Frase exemplar de Bezerra:
“Gastei
tudo o que tinha para não depender do governo. Mas tenho medo que, com as
adutoras, a água da gente acabe”.
Mas nesse caso, ele nem
espera os possíveis fiéis meditarem e já lhe lança na face outra exortação
fanática, agora dando nome ao santo:
Não
há como não lembrar de Ronald Reagan: o governo não é a solução, é o problema.
Bem, agora a máscara
cai de vez: o sujeito elege como salvador messiânico o homem que começou todo
um dramático processo de destruição do parque industrial norte-americano, que fez
a fortuna de empresas ligadas ao ramo da indústria, dos bancos, da saúde, o
farmacêutico etc. Tudo isso à custa de assustadores índices de desemprego,
aumento da desigualdade econômica e de sucateamento dos serviços públicos. Como
um neoliberal não se apaixonaria por um homem como esse? Como um sujeito com
tais propensões ideológicas não colocaria num pedestal uma criatura que
governou para fortalecer os privilégios de uma elite econômica?
Tudo bem que isso não
consista em nenhuma novidade, até porque quando não é Reagan, o autor adora
louvar e santificar os feitos do General Augusto Pinochet: “nunca o Chile
cresceu tanto, nunca os chilenos foram tão felizes, nunca a economia chilena
foi tão próspera...”. O que evidencia de uma forma tão cristalina a relação
absolutamente sui generis que os
liberais têm com a democracia, mesmo com a democracia deles – a liberal-representativa,
única e exclusivamente formal, de fachada, oca e opaca. Mas com a qual nem eles
- os liberais - nutrem grande apreço. O que reproduz a mesma concepção que eles
tinham sobre a escravidão. Aqui como nas sangrentas ditaduras que massacraram
milhões de cidadãos em Nuestra América,
os ideólogos liberais deixavam bem claro que a liberdade de comércio e do Mercado
era muito mais importante que as liberdades individuais.
Satisfeito o Sardenberg?
Não, ele prossegue em sua alucinada doutrinação ideológica de fundo religioso:
E
o problema maior é que não dá para se livrar do governo. A esquerda costuma
acusar os liberais de querer destruir o Estado. Mesmo, porém, que sonhem com
isso, os liberais sabem que o Estado e seus impostos são inevitáveis.
Vai
daí, eis uma agenda bem brasileira, adequada para um ano de eleições
presidenciais. O Brasil só vai voltar a crescer com mais investimentos privados
e públicos.
É claro que os liberais
não querem destruir o Estado. E eles nunca quiseram. Pois foi esse mesmo Estado
(vamos aceitar aqui o reducionismo infantil do termo efetuado pelo autor,
finjamos que ele tenha alguma validade) com os quais eles sempre se
locupletaram; foi esse mesmo Estado que fez fortunas de vários empresários da
iniciativa privada: vide os casos das empresas de ônibus, de trem, de metrô, da
educação universitária etc. E isso ficou bem claro no Golpe de 64, que foi
ardorosamente apoiada pela classe empresarial brasileira.
E o que seria desses
empresários se não fosse o Estado desviando recursos da educação, saúde,
transporte e segurança pública para produzir a riqueza dos milionários da
iniciativa privada via concessão de empréstimos a juros abaixo do Mercado (- ah,
aqui pode!), isenções fiscais; se omitindo quanto à prática de trabalho
escravo, irregularidades trabalhistas, sonegação fiscal; fechando contratos fraudulentos,
sem licitação, superfaturados; efetuando desapropriações, despejos, chacinas e
massacres contra populações de baixa renda para a orgia dos empreendimentos da
iniciativa privada (lembram-se de Pinheirinho, Vila Autódromo, Açú, Belo Monte
etc. etc. etc.?) e um sem número de práticas de crimes, roubos e atentados
contra a economia popular e aos cofres público?
Só mesmo um sujeito extremamente
acéfalo, que desconheça por completo toda a nossa história recente para
acreditar em toda essa balela. Só mesmo não vendo o que esteve por trás da
chamada “Revolução Redentora de 1964” e décadas depois com o ajuste neoliberal,
com a farra dos setores bancários, das empreiteiras e dos fundos de pensões,
para conseguir crer que o Estado seja o grande problema.
Mas o ideólogo dá de
ombros. Porém, ele desdenha não só da realidade
Para
que floresçam os privados, é preciso que o governo, primeiro, não atrapalhe as
iniciativas de gente como os jovens de Novo Hamburgo. E, segundo, dar o
necessário suporte a negócios como o do agricultor do sertão.
Primeiro
ponto, portanto, é abrir espaço e criar boas condições para o investimento
privado. Isso requer ação política, mudança de legislação, incluindo
privatizações.
Agora, de maneira
abrupta, o pregador neoliberal rasga sua batina (das cores da bandeira
norte-americana), bem ali no púlpito mesmo; também joga longe o livrinho de
sermões neoliberais do Profeta Pinochet (talvez seja a sua bíblia); põe um
protetor bucal, veste a sua armadura, sem – é claro – deixar de fazer sua
carinha de mal, parte com uma fúria para uma verdadeira luta de UFC, só que desferindo
murros, pontapés, cotoveladas e rabos-de-arraia contra a verdade e o bom senso.
Como o sujeito pode
dizer que um governo que faz a fortuna da elite financeira, promovendo uma inconseqüente
precarização das relações trabalhistas, uma política extorsiva de juros e
seguidos perdões de dívidas do setor privado, pode atrapalhar alguma coisa que
diga respeito à iniciativa privada?
Como um sujeito pode
apelar para as privatizações como solução de algum mal? Afinal, em que mundo a
mente do Sr. Sardenberg habita? Marte, Lua, O Mundo de Alice? Pois no Brasil,
muito provável que não. A não ser que ele feche os olhos para o que as
privatizações fizeram com a telefonia (um dos piores serviços do mundo e o mais
caro, seja a convencional seja a móvel), os trens, o metrô, os ônibus, as
barcas do Rio, os serviços de luz e energia. Só mesmo muito fanatismo e
cegueira ideológica para a criatura brigar tanto com os fatos da realidade.
Com uma sobriedade, só
vista nos mais compulsivos e obstinados soldados de exércitos de cunho místico,
ele complementa. Mais uma vez, a verdade é posta de lado.
O
segundo ponto é dar eficiência e produtividade às ações do Estado. E foco em
educação, saúde e segurança.
Para
o resto, é melhor fazer a concessão de obras e serviços para o investidor
privado. Quando isso não for possível, o governo deve trabalhar com os
parâmetros de produtividade do setor privado.
Tem
muito lugar em que é assim, inclusive no Brasil, como a boa escola técnica
Liberato.
Veja se uma iniciativa
privada que vive de bolsa-empresário e das tetas sempre generosas do Estado (vide
os nosso falidos clubes de futebol) pode dar lição de boa gestão para alguém?
Realmente, o único
lugar onde a privatização do Estado deu certo foi na cabeça careca (mas cheias
de dogmas, crendices e charlatanices neoliberais) do pregador do Novo
Testamento (de óbito) escrito pelas mãos (sujas de suor e sangue) do
empresariado tupiniquim.