terça-feira, 29 de abril de 2014



É deveras impressionante a forma como Marco Antonio Villa tenta reconstruir a memória do Golpe de 1964. Não satisfeito em desprezar os fatos concretos - tanto os de conhecimento público a décadas como os que têm sido revelados a pouco menos tempo - o contador de estórias (de qualidade duvidosa) agora tenta esbofetear qualquer rigor científico que a ciência histórica possa ter.

No seu afã de provar que o Golpe Militar de 64 foi democrático, patriótico, cristão e revolucionário, o memorialista da Revolução Redentora tenta atacar a figura pessoal de João Goulart. Ele - o estoriador - vem recorrentemente nas suas várias e lamentáveis manifestações investindo na tese de que Jango era o verdadeiro golpista (ele teria mandado cercar o Congresso), era corrupto (recebia dinheiro de empreiteira) e que era um sujeito desprovido de caráter.

Tudo isso justificaria a eclosão de um Golpe brutal (que Villa afirma não ter sido tão brutal assim) em 64 (que segundo o contador de lorota, só começou em 68) e que duraria até 85 (até 79, corrige imediatamente o memorialista imparcial).

Em que tipo de mente, o caráter e os defeitos de um governante podem legitimar e justificar o sequestro do Estado de Direito num país? Em qualquer país decente que se imagine, tal postura intelectual, enormemente deprimente e desqualificada, seria devidamente rechaçada. Mas aqui neste país não: ela ganha ares de teoria de capa da Science.


A última estripulia de Villa é o mantra de que Jango, além de toda a incompetência, era um sujeito sem nenhuma estatura moral. E para tanto Villa se fundamenta em declarações de Celso Furtado, dadas em abril de 1999 (terá sido no dia 1°?), no qual teria afirmado que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”. 

O curioso é constatarmos a fonte de tal achado de Villa. A entrevista de Furtado, a chave de sua revolução interpretativa sobre o Golpe - e que prova que foi na verdade uma Revolução - se baseia numa entrevista dada a Revista masculina de nome Playboy. Isso mesmo meus caros, para provar a sua horripilante interpretação Villa apela para uma revista pornográfica. E com ela sempre debaixo do braço o Villa se volta com enorme truculência intelectual para contestar qualquer afirmação de que o Golpe de 64 instaurou um período de trevas para a democracia representativa. O desespero do historiador em positivar a "Revolução" de 64 é tanta, que ele não pensa duas vezes em unir História e Saliência.





A grande fonte das descobertas de Marco Villa. A profunda Playboy de abril de 99.



Não se quer aqui de maneira alguma desacreditar o depoimento de Celso, mas o que mais irrita na imparcialidade de Villa é o fato dele ignorar outros aspectos de sua entrevista. Villa só extrai aquilo que supostamente confirme a sua crença de que o Golpe tenha sido verdadeiramente revolucionário e redentor (ou um contra-golpe). Ele passa por cima de diversas outras denúncias de Celso. Fixando-se apenas naquele trecho, isolando-o de todo um contexto, parece até que Celso tenha tido a mesma concepção (torpe e nefasta) de Villa: de que o Golpe nos livrou de um presidente nefasto e torpe.

Não, não foi bem assim sr. Villa! E o senhor sabe disso. Basta ler direito e de maneira minimamente honesta as palavras de Celso.

Ora, o que terá impedido Villa de prestar atenção nas outras partes da entrevista? É bem provável que uma revista como a Playboy leve a isso. Estou apenas supondo - que fique claro! - que ele tenha de distraído com outra seções da revista masculina. O que é perfeitamente natural. É como se Villa se trancasse num banheiro com a revistinha e não quisesse ouvir mais ninguém.

Caros, vejamos, não é uma tarefa fácil manter a concentração, mesmo que numa análise séria, rigorosa, criteriosa e desapaixonada da entrevista de Celso Furtado na Playboy de abril de 1999. Pois mal abrimos e isso assim se nos abre:


O conteúdo da entrevista de Celso Furtado parece fascinar a todos.


A despeito de tantas distrações - bobas, é claro, nada que afete a missão de um historiador comprometido com a verdade e com o rigor do ofício do Bloch - é indisfarçável o gozo do historiador em destruir com a imagem democrática de Jango. E usa Celso como principal arma.

Mas se Villa fosse mais cuidadoso ele poderia se basear em outros depoimentos do mesmo personagem. Vejamos o que ele diz numa entrevista dada ao Estado de São Paulo (31/03/2004), mais ou menos na mesma época. Uma visão mais equilibrada se nos apresenta.
 

Perguntado sobre os responsáveis pelo Golpe, Celso segue imputando grande responsabilidade a Jango, mas......


Tenho a impressão que a responsabilidade do golpe cabe tanto ao Jango quanto ao Lacerda. A minha impressão é que o problema da sucessão do Jango seria muito difícil e complicado, no caso de vitória do Lacerda. João Goulart teria que enfrentar um guerreiro nato que só crescia e se agigantava brigando.



Sobre a tal ameaça do fantasma do Comunismo (que o historiador segue dando tanto crédito) Celso é taxativo:


 No Brasil, os militares acreditaram no espantalho e acabaram sendo enganados, como também foram enganados os que acreditaram que os militares só permaneceriam dois anos no poder, antes de devolvê-lo aos civis. Esse foi o caso do grupo mineiro, do Magalhães Pinto e outros, todos a espera da tradicional acomodação que acabou não acontecendo.



Mas disso Villa não quer saber. Ele só quer saber de se ocupar da Playboy - isto é, da entrevista de Celso na mesma. Pronunciamentos ponderados como esse de Celso, analisando vários ângulos e possibilidades de uma mesma questão, cogitando diferentes hipóteses, ou seja, tentando perceber a complexidade de um processo histórico, não, isso não interessa a Villa. O que interessa é mostrar a fraqueza do Jango.

Ou seria uma questão de distração? Mas o que teria distraído tanto ao Villa?




Débora Stroligo também se mostra surpresa com as revelações de Furtado.




E, cá pra nós, passados tantos anos, e de tanto Villa ocupar uma mão com a Playboy de abril de 99 e, com a outra mão, com seus cinco dedos, escrever tanto texto gozado contra Jango, alguém aí teria coragem de pedir essa revista emprestada a ele?


terça-feira, 22 de abril de 2014






O artigo do “filósofo” neoliberal Denis Rosenfield (“Anistia sim!”, O Globo, 21/04/14) achincalha não apenas a construção de uma memória sobre o Golpe Militar de 1964 (ao qual ele se refere como “contra-golpe”), como tenta defender a manutenção irrestrita da falta de punição aos agentes da Ditadura que torturaram, estupraram, seqüestraram, explodiram, eletrocutaram, empalaram e assassinaram durante os anos de chumbo. Para esse notório pensador das hostes conservadoras seria um crime sim encostar o dedo nessa corja, fazendo-os responder por tudo que eles tramaram e executaram durante o regime de exceção por eles patrocinados.



O filósofo tenta de todas as formas dar um verniz pretensamente filosófico ao seu deplorável intento, apelando para o grotesco argumento de que a revogação da Lei da Anistia seria não apenas salutar para a nossa combalida democracia, mas algo que a ameaçasse:



O grande problema da revisão da Lei da Anistia consiste em que ela seria uma quebra de contrato, uma quebra de contrato institucional, que se encontra na própria raiz da democracia brasileira. Não se pode, 50 anos depois, deixar o dito pelo não dito como se a palavra que uma sociedade engaja consigo mesma nada valesse. Tal medida não apenas produziria instabilidade institucional, como seria uma péssima sinalização para o futuro. Se acordos políticos podem ser arbitrariamente revogados, não há por que fazê-los, nem, muito menos, cumpri-los. Na verdade, é uma volta da vingança sob a forma do politicamente correto. Mais ainda, tal medida constituiria uma ameaça à própria democracia.




Ora, se é assim, porque o filósofo não usa a mesma lógica para condenar o Golpe de 64? Muito pelo contrário, o que vemos é o escriba do Instituto Millenium festejá-lo como um mal – sim, um mal -, uma espécie de quebra de contrato, mas feito por uma boa causa, já que teria impedido a instauração de um macabro regime comunista, que aboliria a família, Deus, Nossa Senhora do Parto, o Framengo, o jogo-do-bicho e a festeira Vila Mimosa.



É impressionante que um sujeito que se intitule professor de uma universidade deboche assim de nossa inteligência, de maneira tão inconseqüente. Um descalabro.



Outra conseqüência desse raciocínio espúrio é imaginar o quão fácil teria sido impugnar o julgamento dos criminosos de guerra a serviço do Nazismo. Bom, que simples, caso uma figura com a desastrosa e canhestra mentalidade de Denis estivesse por lá – e ainda bem para a humanidade que isso nunca tenha ocorrido! – os julgamentos seriam imediatamente suspensos e os carniceiros da Gestapo e das SS teriam ido leves e sorridentes para suas casinhas, para passar os últimos anos de suas vidas com toda a impunidade que esse odioso pensamento consagra. Tudo porque a belezura do Rosenfield acharia tudo isso não mais do que um “ato de vingança” e “uma ameaça à democracia”. A Alemanha e a própria Civilização ocidental teriam se saído muito melhor se os órgãos multilateriais tivessem jogado todos os sórdidos e bárbaros crimes dos nazistas para bem debaixo do tapete. É claro que só tendo uma concentrada e cavalar dose de cinismo intelectual para cogitar uma hipótese tão aberrante e atroz.


Há, ademais, uma série de iniciativas parlamentares que visa explicitamente a essa revogação, restrita, evidentemente, aos artigos que dizem respeito à violência cometida por alguns grupos militares, nenhuma referência sendo feita à violência praticada pela luta armada empreendida por organizações de esquerda. Vale para uns, não vale para outros.





Se a bizarra lógica de Denis pudesse ser levada a sério – o que duvido, a não ser que esse país tenha se tornado uma imensa estrebaria.... – mais uma vez teríamos que recorrer ao exemplo dos nazistas para contestar a sua patética e tresloucada teoria: assim, teria sido um absurdo ter levado a julgamento apenas – eu disse a-pe-nas – os nazistas. Muito melhor teria sido julgar e condenar à forca ou à cadeira elétrica aqueles que pegaram em armas para resistir ao totalitarismo hitlerista. Um absurdo terem brindado com total impunidade os membros da Resistência Francesa, os partizans, os poloneses do Gueto etc. No mínimo que eles mereciam era uma bela de uma cadeia – e que lá mofassem. Esse é o prêmio de quem realmente luta pela democracia através das armas. Ao menos essa parece ser a concepção de alguns inveterados neoliberais.



Mas Denis não se satisfaz em emitir opiniões devastadoras e chocantes. O seu artigo consegue descer mais e mais o nível do razoável. Não satisfeito em defender idéias e conceitos tão repulsivos, o filósofo da “Revolução Redentora” parte para a agressão contra os fatos, tratando-os a pedradas e pescoções. As linhas abaixo são um retrato do modus operandi intelectual do sujeito – incrivelmente assustador...:



A transição democrática no país foi um exemplo para o mundo, tendo se realizado sem traumas nem eclosão de violência. São inúmeros os exemplos no planeta em que a saída de regimes autoritários ou ditatoriais se deu pela luta armada e, mesmo, pela guerra civil. Não é o caso do país, que fez uma transição pactuada entre os próprios militares democráticos, a oposição, sobretudo personificada no MDB, e os egressos do partido do governo, a Arena, que vieram a fundar o PFL. O seu instrumento central foi a Lei da Anistia, que alcançou todos os envolvidos em atos de violência anteriores. Tratou-se, naquele então, de um grande acordo nacional, maciçamente apoiado pela sociedade brasileira, aprovado pelo Congresso Nacional e, ainda mais recentemente, validado pelo Supremo Tribunal Federal.




Maciço como se ainda vivíamos numa ditadura? Que pesquisa feita na época mostra esse apoio irrestrito e apaixonado da “sociedade”? E de onde ele tirou esse papo-furado de que a “transição democrática” nesse país não sofreu com a violência (mas que absurdo minha nossa senhora!)? Esse senhor por acaso não era chegado em ler jornal ou se na sua mentalidade o Atentado terrorista do Rio Centro não existiu? Todos sabem, até uma criança analfabeta, que balbucie algumas poucas palavras que a linha dura do Regime Militar atuou de todas as formas para boicotar a tal transição (inclusive realizando inúmeras execuções). Todos sabem, menos o filósofo. (Mas será o Benedito Denis? Jesus Maria José...)



Num de seus últimos arremates, o pensador se supera e desce às profundezas do pensamento ocidental sobre Democracia. Ele carrega no verniz e nos oferece uma reflexão digna de ser lida à luz de archotes:



Note-se que a esquerda “revolucionária”, hoje tão decantada, ficou totalmente à margem deste processo. Não apenas isso, ela tinha sido completamente derrotada na luta armada, não tendo tido nenhum apoio popular, sendo uma operação militar de intelectuais e estudantes, despreparados, porém ideologicamente bem apresentados. Atualmente, procura-se envernizar essa esquerda que não tinha nenhum compromisso com a liberdade e a democracia. Hoje, eles posam de combatentes da democracia, quando nada mais eram do que instrumentos de implantação do comunismo/socialismo no país. O seu objetivo consistia em instituir a “ditadura do proletariado” que, enquanto “ditadura”, não pode ser evidentemente democrática!



E somos obrigados a perguntar mais uma vez, de forma bem simples, com uma vontade louca de desenhar: ora, como ela poderia ter participado da transição se elas foram reprimidas e cassadas ferozmente?



Aqui o direitista recorre a velhos espantalhos (“a implantação do comunismo/socialismo”...) para fugir do fundamental: o que os militares e golpistas queriam evitar era a implantação de medidas concretas que visavam a uma redistribuição de poder e à implantação de novos padrões de produção e obtenção de capital no Brasil, como seriam os casos das reforma agrária, urbana, bancária, educacional. Era disso do que se tratava e não de fantasmas inventados por carrascos da democracia e que seguem sendo repetidos à exaustão por papagaios e viúvas do Regime Militar.



Perto do fim (ou depois dele) o filósofo joga a toalha e parte da maneira mais descarada possível para a justificação de um dos atos mais degradantes perpetrados pelo Regime Militar – o massacre do Araguaia:



Um dos episódios mais retomados nesses últimos meses, como de desrespeito dos militares com os direitos humanos, consiste na guerrilha do Araguaia. Agora, os atores revolucionários são apresentados como combatentes da democracia. Eles eram maoístas e seguiam as diretrizes dessa forma de marxismo asiático. Seu objetivo consistia claramente em criar no Brasil um Estado totalitário aos moldes de Mao. Alguns eram também albaneses, uma variante ainda mais mortífera do maoísmo. Para eles, a democracia era burguesa e, portanto, deveria ser completamente destruída. Neste sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós.

Neste sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós. Liberticidas se tornam combatentes da liberdade!

 



Aqui o autor consegue sabotar qualquer esboço de respeito que eu possa ter pelo seu dantesco artigo. Combater idéias - vá lá! Agora, tentar fazer a reabilitação intelectual de um ato asqueroso e criminoso como foi o massacre e trucidamento de militantes políticos, tendo ainda a coragem de frisar que os assassinos queriam “simplesmente evitar que o totalitarismo maoísta se instalasse entre nós” - não, não e não. Aí é demais Sr. Rosenfield.



E, além de tudo, é um raciocínio tão tosco que toma como pressuposto a nossa incapacidade total e absoluta de não acreditar na absurda tese de que uma guerrilha que contava com umas poucas dezenas de militantes estivesse prestes a detonar uma revolução cultural que se irradiaria do Oiapoque ao Chuí, passando pelas Avenidas Atlântica e São João em Sampa.



Na verdade, mesmo que isso fosse verdade, como tolerar que opositores políticos possam simplesmente ser executados e até decapitados, e isso estando totalmente desarmados e rendidos? Mas é claro, tratam-se de autênticos defensores da verdadeira democracia e dos valores democráticos. E são tão democráticos que só toleram e concebem apenas uma noção de democracia: a de fachada liberal-mercadológica.


É o espírito da Marcha que nos ronda como um espectro e que continua a pairar sobre nossas cabeças.
 

Leonardo Soares é professor de História.


sexta-feira, 18 de abril de 2014




Por Leonardo Soares




É impressionante como o frenesi gerado com o evento de "comemoração" dos 50 anos do Golpe de 1964 mexeu e ainda vem mexendo com o notável e espetacular contador de estórias Marco Antonio Villa.

Se as inúmeras pesquisas, revelações e confirmações seriam motivos de apreço em qualquer mentalidade minimamente coerente e sensata, para o nosso memorialista dos anos de chumbo tem sido motivo de angústia e aflição.

Munido de sentimento tão devastador, Villla se insurge contra toda a crítica que vem se consolidando a respeito daquele período horrendo de nossa história.

E, então, como bom aprendiz dos “revolucionários” da Marcha da Famiglia Com Deus, abre semanalmente - a partir das páginas do pasquim que apoiou descaradamente o Golpe de 64 - o seu particular tiroteio contra o argumento histórico.

Ao fim e ao cabo nada sobra. Nada, nem o respeito à verdade e ao compromisso com a honestidade intelectual.

Minto: o que se tem é a construção de uma memória que corrobora a “Revolução Redentora”, assume com extrema irresponsabilidade os argumentos e balelas dos “revolucionários”, manipula depoimentos para associar a figura de Jango a de um bufão pseudo-peronista que cheirava a churrasco e classifica os membros da luta armada como protótipos de Darth Vader a serviço do ouro de Moscou.

E ainda alça como heróis da resistência democrática homens que foram apoiadores e articuladores do Golpe, seus seguidores de primeira hora como Ulisses Guimarães (futuro esqueleto sem paradeiro...) e JK.



Depois de tanta barbaridade em forma de texto, fica difícil saber qual o melhor lugar para se depositar os “escritos” do contador de estória: se no esgoto a céu aberto mais próximo de casa ou se num necrotério.....





quarta-feira, 16 de abril de 2014







Dentre tantas ofensas perpetradas contra a verdade histórica pela cambada saudosa da Ditadura e de seus crimes contra a humanidade, uma em especial impressiona pela fachada tecnocrática e um certo ar de objetividade – a de afirmar que a Revolução “redentora e gloriosa” fez o que fez (destruindo, massacrando e torturando milhares de pessoas), mas logrou modernizar o Brasil, em especial a sua infraestrutura e o campo (revolução agrícola).  Ela – a Ditadura - matou sim (“- E daí?”), mas melhorou esse país, fez as reformas necessárias, fez ele mais forte, mais pujante. Quanto engodo.



Em outra oportunidade já mostrei o quanto o primeiro aspecto não passa de uma tentativa de distorcer e vilipendiar o argumento histórico, num tipo de ato intelectual que beira a delinquencia. Os chamados grandes empreendimentos da cúpula empresarial-militar não serviram para outra coisa se não produzir a destruição ambiental por onde passou, o extermínio de diversas espécies da flora e da fauna; obras superfaturadas, nas quais a fraude campeava, a corrupção idem e – como se já não bastasse nesse bizarro panteão de atrocidades – até genocídios foram meticulosamente planejados e executados, como o comprova as investigações sobre a construção de rodovias nas regiões Norte e Nordeste, onde segundo cálculos ainda bastante incompletos, cerca de 8 mil índios foram brutalmente chacinados de modo a “limpar” as regiões. Ou seja, tais obras foram magnânimas apenas para quem lucrou com ela (os magnatas dos setores da construção civil, de logística, energia, comunicações etc.) – só que a custo de muito sangue, balas, foiçadas, bombas, roubos, propinas e dor, muita dor.



Mas o segundo aspecto, o da suposta modernização agrícola, ainda resiste no imaginário das carpideiras da Marcha da Família, como se fosse um fato inegável. No fundo ela não é mais do que mais uma empulhação – tão típica da parte dos paladinos desse regime de horror. Basta uma simples e prosaica olhadela em alguns fatos desse hediondo período.



Longe de modernizar, o regime militar se mostrou tão incompetente na condução da questão agrária que praticamente o país regrediu em todos os índices no que tange à agricultura e à política fundiária.



Muito ao contrário da propalada melhoria, as relações de trabalho atingiram um grau de precarização de fazer inveja aos mais odientos regimes feudais ainda existentes. O problema é que na Ditadura o trabalhador rural além de se ver barbaramente aviltado, tanto na exploração de sua mão de obra como nas condições deploráveis em que trabalhava, tinha que sofrer e apanhar calado. Era-lhe proibido o direito de manifestação, de protesto e organização. Só lhe sobrava os sindicatos patronais ou pelegos, que mais pareciam clubinhos de dança e centros sociais que distribuem brinquedos – ou seja, o mesmo que nada.



Se ao tempo de Vargas e de vários governos que o sucederam - e mesmo com muitos problemas e percalços-, um vigoroso movimento camponês ia se constituindo (por meio principalmente dos sindicatos rurais e das Ligas Camponesas), até por isso várias demandas, reivindicações e denúncias chegavam ao conhecimento da opinião pública. O que se dava por meio de jornais, rádios, lideranças sindicais e legislativas (senadores, deputados, vereadores) e dos próprios trabalhadores rurais que se lançavam em inúmeras greves, manifestações em centros urbanos, protestos, ocupações de assembléias e sedes do poder executivo etc.



Nos anos 60, mesmo que com muitos obstáculos e carências, as categorias do campo já haviam conseguido uma lei que liberava e regulamentava a criação de sindicatos rurais. E com todo o seu poder de pressão, que já ressoava pela maior parte do país, eles conseguiram que vários setores da elite e da classe política atentassem sobre a urgência de uma reforma agrária. Esta era efetivamente uma questão da agenda política daquele momento, capaz de trancar a pauta do Congresso. O próprio presidente Jango, não à toa, sentia-se pressionado a fazê-la. Então veio o Golpe de 1964 e tratou de solapar todo esse campo de debates e lutas. Castrou os sindicatos; ceifou lideranças políticas; dizimou as Ligas; perseguiu, torturou e assassinou militantes camponeses – aos montes. O campo ficava aberto a toda sorte de desumanidades por parte dos grandes proprietários e companhias capitalistas. Agora eles podiam explorar o trabalhador até o talo. Com total tranquilidade e irrestrita impunidade.



O Regime também abriu a porteira, como nunca, para um processo gigantesco de grilagem de terras. Foi à seu tempo, quando a desregulação e omissão atingiram níveis criminosos, que figuras do baronato fundiário se apossaram de terras que alcançavam a extensão de alguns países da Europa. E olha que a Cúpula golpista, com poucos meses usufruindo do seu poder, ainda teve a coragem de apresentar um projeto de reforma agrária, que propalava a chamada modernização do campo, mas que nunca seria executado. Pelo menos a modernização que interessava à sociedade. Já os latifundiários se fartaram com a exploração de trabalho escravo e com liberdade para abocanhar a seu bel prazer as terras da Amazônia e do Cerrado. E várias tribos indígenas foram, por tabela, dizimadas. Simples assim.



Se a produção agrícola teve vultoso crescimento (principalmente produtos como café e açúcar), e alguns setores tenham conhecido um notável grau de modernização técnica e mecanização de suas atividades, por outro, não é menos importante que se destaque que é exatamente nesse período que surge no cenário a figura do bóia-fria. Figura mais emblemática da precarização, esbulho e humilhação que assolavam as relações de trabalho nas unidades agrícolas na época do Regime. É significativo que ele também fosse chamado com o singelo nome de “pau-de-arara”.



Ou seja, em alguns setores o avanço tecnológico parecia ser inegável, mas todo ele alimentado por relações praticamente feudais e pré-capitalistas. O sociólogo Octavio Ianni é enfático nesse ponto:



“À medida que se desenvolve, a agroindústria produz e reproduz o bóia-fria, volante ou pau-de-arara. O bóia-fria é a forma mais desenvolvida em que se expressa o caráter das relações de produção na agroindústria canavieira (Origens agrárias do Estado brasileiro, p. 72).”



Cabe ainda lembrar que a incompetência congênita da Ditadura na administração da política fundiária levou o caos ao abastecimento de algumas cidades. O caso da cidade do Rio de Janeiro é emblemático. Até a data do Golpe contra a Democracia em 64, diversos setores da sociedade carioca lutavam por iniciativas e projetos que preservassem o Cinturão Verde da cidade. Este vinha sendo engolido pelo capital imobiliário com intensidade desde a década de 40. Com muito custo aqueles setores buscaram contrarrestar o avanço dos grileiros e negocistas do ramo imobiliário a partir de articulações com lideranças e partidos da esquerda (PCB, PSB e PTB), com a imprensa partidária da época (Imprensa Popular, O Radical, O Popular, Novos Rumos), e – principalmente – com muito protesto, manifestação e pressão junto aos centros de poder da época existentes na cidade (Senado, Câmara Federal e Municipal etc.).



Tudo isso foi jogado no ralo pela truculência e selvageria dos que tomaram o poder em 1964, que simplesmente cassaram, perseguiram e prenderam a maioria daquelas lideranças e militantes partidários. Fecharam suas organizações e entidades. Interditou o dissensso. Calou a crítica. E quem pagou o pato foram os pequenos lavradores do chamado Sertão Carioca (atual zona oeste) e, de quebra, a população urbana e suburbana. Os quais sem um Cinturão Verde que a servisse de alimentos mais em conta, com abundância, acabou ficando refém da comercialização de produtos de outros estados, o que se refletia na qualidade e no preço dos produtos: mais escassos e mais caros.



Por outro lado, a Ditadura não movia uma palha para impedir o amplo processo de retalhamento e grilagem das terras da Zona Oeste, que dizimavam com a agricultura local e só serviam para a especulação imobiliária. Isto é, a agricultura era destruída estupidamente, sem dirimir um pingo que seja o problema habitacional que já se avolumava naqueles anos. E o abastecimento de gêneros no Rio um completo caos.



Com a Ditadura -  e o consequente sequestro das liberdades democráticas, seguido de choque e estrangulamento - todo a farra dos especuladores imobiliários encontrou terreno propício. Não havia quem ou o quê que pudessem questioná-los. Tava tudo dominado!



Uma total vergonha. O Regime que praticamente reconsagrava o trabalho escravo no campo, omitia-se vergonhosamente diante da destruição de cinturões verdes no país.



Como alguém pode sentir saudades de um câncer desses?





Leonardo Soares é professor de História da UFF.


sexta-feira, 11 de abril de 2014




Tentem imaginar a cena.
Num certo país ao norte da América do Sul, um dos governos mais autoritários, totalitários, comunistas e chavistas do mundo (sim, a imprensa na hora de elaborar conceitos só perde para a filósofa Valeska Popozuda) manda enviar tropas federais para conter uma onda de protestos sangrentos, violentos e de contornos fascistas por parte do segmento mais conservador da sociedade, a classe média e a elite econômica – bastante insatisfeitas com a aproximação das classes “mais baixas” na estrutura social como decorrência das políticas sociais implementadas ainda ao tempo de Chávez, e que de fato foram uma das mais bem sucedidas do mundo, mas, claro, vistas como a manifestação de um satânico projeto de implantação do comunismo bolivariano.

Tais segmentos fascistas querem fazer a roda do tempo girar para trás de novo. Ver o populacho regredir, parar de falar de política e de fazê-la acontecer em favor de seus interesses. Que o povinho preto, pobre, favelado e mulambento volte a ser submisso; que volte a ter consciência do seu lugar (bem subalterno) e se comporte como tal.

Para impedir que a vaga fascista de extrema-direita viceje o governo de Maduro fez cumprir as prerrogativas que a Carta Constitucional lhe confere. Botou as tropas nas ruas para conter o terrorismo dessa direita.

Mas mal as tropas pisaram o solo das cidades aterrorizadas pela sanha extremista da “oposição” fascista, o pasquim global do golpismo iniciou uma virulenta ofensiva midiática de contra-informação, proclamando para o quatro ventos que se tratava de mais uma demonstração de autoritarismo de um dos governos mais ditatoriais da história recente da América Latina.  (Seria cômico se não fosse trágico se isso não ocorresse ao mesmo tempo que aqui se comemora os 50 anos do Golpe Militar de 1964 – o qual contou com extremada simpatia e apoio do pasquim global.)

O envio de tropas é mais um claro indício do desprezo que o governo Maduro demonstra pelos “verdadeiros valores democráticos”, a sua recusa em aceitar conviver e respeitar quem lhe faz “oposição”, o seu ódio pela pluralidade de idéias e opiniões – mais uma vez, o cinismo aqui dá o tom, ainda mais vindo de um veículo comprometido com a defesa radical do monopólio das telecomunicações e do uso aberrante da máquina judiciária contra os seus concorrentes e opositores.

Bom, estando certo ou errado, essa é a opinião do pasquim e a forma que ele encontrou para enaltecer os símbolos dessa nossa conhecida de nome Democracia.

Mas muito pior do que estar errado, o pasquim se mostra um incurável órgão golpista esquizofrênico.

A mesma iniciativa que na Venezuela é vista como um golpe contra a cidadania e os valores democráticos, são tidos e havidos na mais nova ocupação militar das favelas do Rio como expressão do mais desbragado comprometimento com a... cidadania e os valores democráticos.

As tropas das forças armadas ocupam novamente algumas das favelas cariocas, com armas em punho, com escopetas apontadas indiscriminadamente para as cabeças dos seus moradores. Mais uma vez se consagra a idéia de que os moradores pretos e favelados devem ser alvos ou de políticas públicas pobres (e de quinta categoria, posto que voltada para cidadãos de segunda classe) ou de repressão armada direta. Pois só assim para esse povinho se colocar no seu lugar. É essa a política que resolve a situação desse tipo de raça.

E escola? Cadê hospital, posto de saúde, coleta de lixo, esgoto, água potável, banco, correios, segurança, teatro, cinema, biblioteca? Cadê a cidadania? Cadê a Justiça? Cadê a Liberdade? Cadê o Estado de Direito? Cadê os direitos? Cadê Amarildo?

Mas vocês só podem estar brincando? – assim indagaria o pasquim da Família (da Zona Sul) Com Deus.

É muito estranho que para um jornal com esse tipo de mentalidade, que algumas  categorias sociais (e raciais), possam ter a audácia de querer algo mais do que um prato de comida e uma cama para descansar o esqueleto.

Política pública e social não é para qualquer um. Política para pobre, a verdadeira, a mais eficaz é aquela que se baseia no poder do fuzil e no peso de tanques e caveirões. E nada mais. Se na pátria de Maduro tal iniciativa é abominada, aqui, ela é prontamente festejada pelo pasquim e seus companheiros de quadrilha midiática.

As ações militares que subjugam e impõem medo aos cidadãos são apresentadas como a reação necessária das forças de segurança contra os “inimigos” da paz, da cidade e dos cidadãos decentes.


Mas se olharmos com mais atenção, vamos perceber que longe de incoerente, o pasquim faz uso de um argumento de uma lógica impecável, de uma coerência cartesiana: a democracia no mundo é perfeita, o que estraga é a droga do pobre! Tanto aqui como na Venezuela.

Assim pensando, a mídia golpista e elitista sedimenta o senso comum que ceifa vidas e famílias. Essa mídia é responsável sim pelos Amarildos e Cláudias de todas as noites. Essa mídia está toda suja do sangue dessa gente. Mata com impunidade, assim lhe permite a falta de democracia dos meios de comunicação desse país.

Leonardo Soares é historiador.


domingo, 6 de abril de 2014

 Convocatória


Tema Central
América Latina : Entre Espaços e Pensamentos: Corpos Locais e Mentes Globais
Sociedade-Politica-Economia e Cultura
Período: 25 a 29 de agosto de 2014
Local: Campus da UERJ - Maracanã

 http://www.nucleasuerj.com.br/home/ivcongresso/index.php
 
HIST-1 - Partidos e organizações políticas das Américas nos séculos XX e XXI: entre memória e história.

Coordenadores: Prof. Dr. Jayme Lúcio Fernandes Ribeiro e Prof. Dr.
Leonardo Soares dos Santos
E-mails: jaymelucio@uol.com.br, leossga@gmail.com
Ementa:
Os estudos concernentes à relação entre História e Memória vinculados aos
grupos e partidos políticos permitem pensar a interlocução entre as formas
de elaboração da memória e a dos processos de construção de identidades
sociais, tendo em vista que é possível afirmar que não há memória sem
disputa. Além disso, as identidades dos diversos partidos e/ou grupos
políticos são construídas em função de (ou tendo por referência) algum tipo
de memória.
Assim, o simpósio está preocupado em estabelecer um diálogo teóricometodológico
entre os pesquisadores que se preocupam em estudar os
partidos, os grupos, as associações e todo o conjunto de movimentos com
finalidades políticas, nas Américas, em sua relação com a memória. O
simpósio visa permitir o debate entre as diversas ideologias que serviram (e
servem) de base para diversas agremiações e partidos, perpassando pelas
relações com o mundo do trabalho e por linhas políticas que, ao longo dos
anos, foram se modificando de acordo com a interpretação que tais
organizações faziam da sociedade e do período pelo qual passavam.
Pretende ainda apresentar e discutir as interpretações sobre o campo
específico da História e Memória, em debater trabalhos que abordem
diferentes temáticas e em analisar questões teóricas e metodológicas
relativas à utilização e ao tratamento das fontes.

sábado, 5 de abril de 2014





Os acontecimentos recentes da Venezuela e o movimento grevista dos garis da cidade do Rio de Janeiro no início de março de 2014, em pleno carnaval, e a forma como a grande imprensa brasileira moldou a cobertura sobre tais eventos nos fazem perceber o quanto o tema analisado pelos pesquisadores argentinos María Verónica Secreto e Norberto Ferrero se mantém vivo - em mentes, corações e vocabulário de muitos escribas nas redações refrigeradas desse país afora.


Em Os Pobres e a Política os autores passeiam por diversos temas da história latino-americana, com especial ênfase nos países da América do Sul, procurando demonstrar como foi sendo gestado ao longo de séculos uma tensa e desigual estrutura de relações entre as elites políticas e as classes populares (os pobres). O estudo resumido de eventos como as guerras de independência, os movimentos rurais (desde pelo menos o século XIX), o trabalho escravo (e forçado) e os movimentos sociais evidenciam como tal desigualdade se manifesta no simples fato de que historicamente “o populacho”, a “massa ignara”, a “ralé sórdida”, em suma, o “povo” é visto como incapaz de agir politicamente, de pensar a sua situação em termos políticos, de vivê-la e construir significados e possibilidades a partir dela.


Os eflúvios do pensamento racial da segunda metade do século XIX se fazem sentir: mas se naquele o legado racial impedia o negro, o índio e o mestiço de vislumbrar qualquer aspecto da vida que não se resumisse a sua miserável e sórdida busca pela sobrevivência – tal qual um ser bastante primitivo, sem cultura, bárbaro etc. – hoje uma sutil adequação foi feita a tal raciocínio, até porque a fragorosa derrota do nazismo foi a pá de cal no discurso racial. Mas a necessidade de estigmatizar certos segmentos se manteve firme. O nazismo sim foi derrotado, já o sistema capitalista de dominação de classe não. Daí a perenidade do ato de desqualificação do(s) pobre(s). Incapaz, inepto, inconsciente, despolitizado e místico não por fatores genéticos. Mas por questões culturais (clientelismo passado de geração em geração), pelo fatalismo estrutural legado por sua condição de classe (o sistema de exploração o massacra a ponto de lhe embotar qualquer possibilidade de superação de sua miserável existência pela via da política) e razões históricas (a sociedade civil na América Latina sempre foi gelatinosa).


Os autores começam a desmontar tal perspectiva exatamente pelo trabalho de investigação de caráter histórico. Em “A plebe nas guerras das independências”, o primeiro capítulo do livro, os autores demonstram que as camadas populares foram sim parte importantíssima desse processo, atuando como protagonista, influenciando no resultado final das lutas e apresentando demandas e reivindicações distintas da elite. Espaço especial é dedicado à luta dos negros escravizados do Haiti, movimento único na história, mas que por fatores ideológicos e políticos (inclusive raciais) foi apagado da historiografia tradicional.

Em “A terra nos movimentos sociais” eles enfatizam a importância da luta de segmentos indígenas na luta pelo direito à terra na antiga América espanhola; luta cujas marcas se fazem visíveis até hoje, nos embates contra as multinacionais e empresas do agronegócio em pleno terceiro milênio. Aliás, a investigação histórica nos permite ver que idéias e conceitos como cidadania, igualdade e estado moderno quando transpostos ao plano concreto da realidade se mostra prenhe de contradições e incoerências, motivando por si só a eclosão de uma série de conflitos entre diversos agentes sociais.


No terceiro capítulo, os autores reconstituem com grande competência e clareza todo o debate em torno do trabalho escravo desde o século XIX, no mundo – desde as ações da Anti-slavery International em 1839 - e no Brasil. Os autores demonstram que foi aqui que o conceito de trabalho escravo ganhou maior repercussão, para o que muito contribuiu a larga experiência da escravidão. Já no mundo como um todo prefere-se adotar a expressão trabalho forçado, “o que remete a uma especificidade do mercado de trabalho contemporâneo”. Os autores chegam a tal conclusão após analisar o amplo debate realizado por grupos, entidades e governos de diversos países por mais de um século, desde o Slavery Abolition Act de 1833, passando por acordos e tratados sancionados pela Sociedade das Nações e pela Organização das Nações Unidas (ONU), até a elaboração da Convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).


O ponto principal desse capítulo é a problematização e crítica que os autores fazem do termo trabalho escravo tal como pensado no Brasil. Além de guardar certo vício paternalista – ao encarar o trabalhador como incapaz e uma vítima congênita, o termo traz em si uma certa absolvição do caráter exploratório do próprio sistema capitalista, colocando a culpa nos ombros de uma suposta falta de caráter de patrões “desumanos”, por isso, na avaliação dos autores: “a utilização de outra terminologia como servidão por dívidas permite colocar a culpa no culpado e não na vítima, porque implica o reconhecimento do capitalista como um explorador em potencial no momento em que as condições de produção o demandem, e não simplesmente como uma perversão particular ou um retorno às formas e práticas sociais do século XIX”.  

No quarto e último capítulo, os autores destacam a questão dos movimentos sociais, analisando as suas relações com o Estado, a construção de identidades, a organização e a construção da forma de ação social de nome protesto, a atuação dos pobres etc. Mais uma vez os autores utilizam temas gerais como pano de fundo para a (re)problematização de conceitos consagrados e – diríamos - ossificados em certo imaginário acadêmico. Um dos mais notórios é certamente o do clientelismo. E aqui os autores mais uma vez evidenciam como as elites políticas e sociais, e, vasta parcela dos intelectuais acadêmicos (seja de “esquerda” ou de “direita”) operaram com esse conceito em diversas análises sobre a relação entre Estado e Sociedade Civil (em especial no chamado contexto de vigência do Populismo), com o estrito objetivo de desqualificar, minimizar e despolitizar as ações de protesto e de intervenção na política por parte das camadas populares, ou, da “gente pobre” das favelas, periferias, subúrbios, morros, villas e barrios.


Como bem alertam os autores no tocante a participação desses pobres neste e noutros capítulos de nossa história, mais frutífero do que o apego a conceitos claramente pejorativos e estigmatizadores, é preciso ir fundo nesta história, percebendo concretamente o que está em jogo, que “variáveis ingressam na política dos pobres e mostram que eles fazem política, embora não da forma como os partidos e os políticos tradicionais gostariam ou prescrevem”, até por que eles “fazem política da forma como eles entendem que deve ser feita”.

Uma pena que a classe jornalística leia tão pouco. Com esse simples livrinho muita atrocidade deixaria de ser escrita. Melhor para o Justo Veríssimo (o do " - Quero que o pobre se exploda!"), que de sua catacumba vê tranquilo e satisfeito a reprodução do seu legado nos jornais da grande imprensa.