sábado, 29 de março de 2014





Leonardo Soares dos Santos


Uma sucessão de omissões e barbaridades têm cercado o Caso Tinga: o episódio em que o jogador do Cruzeiro foi ofendido pela torcida do Real Garcilaso, numa partida disputada no Peru pela Taça Libertadores.

Mesmo com parte da torcida no acanhado estádio de Huancayo imitando macacos de maneira estrepitosa assim que o jogador pegava na bola, o árbitro do jogo, o venezuelano José Argota foi incapaz de relacionar isso na súmula. O que para a Conmebol já bastaria para dar o caso como encerrado. Mas a repercussão foi bastante forte por parte do Cruzeiro, o que levou a Conmebol a tomar "providências". A primeira foi chamar o árbitro para dar maiores "explicações". E que consistiram, por parte dele, em dizer que havia escutado apenas "Vaias normais" e nada além "de manifestações normais de jogo".

Pior fez o delegado do jogo, que disse que, "como chovia, estava abrigado sob um toldo, e o barulho da água o impediu de ouvir a torcida".(A dúvida que fica se esse toldo estava dentro ou fora do estádio, ou se em Lima?)

Mais do que o ato de racismo em si, o que mais surpreende e causa indignação são os argumentos de personalidades ligadas a Conmebol. A matéria veiculada n'O Globo (22/03/14, p. 38), assinada por Carlos Eduardo Mansur é emblemática. É incrível que num texto de aproximadamente duas laudas apenas, encontremos tantas declarações que desafiem a um só tempo a lógica, o bom senso e a razão.

O secretário-geral da entidade, um moço de nome José Luiz Meiszner afirma que Tinga não sofreu racismo de modo algum. Num lance de puro gênio, Meiszner diz a Folha de S. Paulo:
Um moreno peruano imitando macaco para um brasileiro um pouco mais escuro do que ele não é discriminação racial. É, sim, uma provocação mal educada.

Algumas indagações podem ser imaginadas a partir disso: e se fosse uma torcida norueguesa, sueca ou dinamarquesa fazendo o mesmo gesto para Balotelli? 
" - Sim, aí sim seria racismo."

Então fica estabelecido que só comete racismo (contra negro, "moreno peruano" ou um "brasileiro mais escuro") quem é branquinho, "louro peruano"(e tem, lembrem-se do árbitro que ajudou o Brasil contra a Argentina na Copa América de 95) ou um "brasileiro menos escuro".

É isso?

Não. Pois nada mais falso, mais tosco e insidioso com a verdade história e sociológica.

Em primeiro lugar, isso parte do simplório princípio de que é a cor da pele que determina quem de cara e para o resto da vida será protagonista e vítima de algo como o racismo. E pior: postula que um "negro" só pode ser vítima de racismo por parte de um "branco".

Vemos aqui como o racismo é capaz de se entranhar até no argumento pretensamente crítico. Antes de racial, mas bem antes, o racismo é um fenômeno social e político. Ele é um ato que pode até se basear e se voltar para um componente biológico de um certo grupo de pessoas (a cor da pele), mas a sua motivação, sua lógica, seus argumentos, princípios e postulados fazem parte de uma dimensão estritamente intelectual; minuciosamente construída por gerações de pensadores, intelectuais, cientistas e ideólogos; estruturada ao longo de séculos de pesquisas (supostamente científicas), ensaios e deturpações que tomaram a forma de panfletos. O racismo, portanto, não é motivado por questões biológicas. Ele é um ato eminentemente político. Mais importante: ele não tem a ver com caráter (ou falta dele): mas com uma disputa por poder, mesmo que esse poder seja puramente simbólico. O que explica o seu caráter estratégico, o que explica que uma torcida até para desestabilizar um jogador do time rival imite macaco ou lance cascas de banana no gramado. Ou seja, o racista dificilmente age por instinto. Ele de alguma forma foi educado para na oportunidade adequada cometer o ato racista, com requintes de crueldade e boçalidade.

E então entramos no segundo ponto: a fala dos dirigentes da Conmebol reproduz um dos maiores equívocos a respeito do racismo - e que é maciçamente difundido pelo senso comum: o de que o racismo é fruto de desinformação, má-educação ou falta de "consciência". Erro no qual o próprio Tinga incorre quando declara:
- Punir ou não é algo que não vai mudar minha vida. Espero conscientização. Não quero é que seja tratado como algo normal.

Ledo engano. A maioria esmagadora dos racistas (e daqueles que são mas se escondem no armário da conveniência) são extremamente conscientes de suas idéias racistas. Ao contrário de pessoas deseducadas: são educadas no ódio, no desprezo e na certeza inabalável de que são superiores.

Basta uma simples pesquisa para ver como isso se verificou na história. Ora, eram altíssimos os níveis de escolaridade da Ku Klux Klan, composto até de professores universitários; o que dizer do Partido Nazista, com seus professores, cientistas e até filósofos em suas fileiras - um deles escreveu um livrinho de nada chamado "Ser e tempo"; basta ter um mínimo conhecimento da história do pensamento racial nos diversos países, mas se for muito, tomem apenas o caso do Brasil: teses e pesquisas científicas por cabeças doutas e "brilhantes" foram mobilizadas em prol do progresso dos argumentos raciais e racistas no meio acadêmico e intelectual.

É inútil querer associar racismo à ignorância e estupidez. Tragicamente ele está mais associado a um desdobramento do pensamento científico ocidental e que, mais desgraçadamente ainda, foi-se infiltrando em vastos segmentos e esferas do senso comum, conformando uma filosofia, que se nutre do ódio e da discriminação do outro, mas altamente consciente. Longe de um produto de cérebros ignaros, o racismo só age por meio de mentalidades culturalmente e socialmente treinadas para tal. Ninguém nasce com ele, ele não tem a ver com herança genética e nem está na pele - a pessoa é educada por outros (pais, família, escola, amigos, grupos e/ou partidos) para se transformar em racista.

Em terceiro lugar, não tem o menor sentido distinguir racismo de provocação. A ato racista tem exatamente como objetivo infligir dano a pessoa insultada e...provocada. Ora, basta que se leia o mais reles dicionário de bolso para saber disso. 

Mas é exatamente um aspecto da discussão em torno do caso que é o mais revelador do fenômeno do racismo não só no Brasil como na América Latina como um todo: a decidida recusa em aceitar a sua existência, de que existe o racismo e de que ele precisa ser combatido . Um dos maiores obstáculos a discussão do racismo como uma questão política - e não apenas um comportamento delinquente (o que não esgota a questão) - é exatamente tal recusa, o que impede em reconhecer que ele é parte integrante de nossa cultura. 

Tanto assim que o Real Garcilaso não receberá qualquer punição. Uma advertência se tanto. O que mostra que há até hoje não só no Brasil como também em Nuestra América a existência de um acordo tácito, rigidamente fincado no imaginário tanto das elites como das classes populares, em negar tal questão. O que emperra a própria constituição de um campo de debates, com seus protagonistas claramente delimitados, que possam atuar e defender suas idéias de maneira franca e explícita. Sendo assim, os racistas continuam agindo nas sombras e casos como o de Tinga seguem sendo "mais um". E nesse caso, o anonimato é uma das principais armas do racismo, contribuindo para a sua perenidade e para a perpetuação da fábula "Nós não somos racistas!".

Nenhum comentário:

Postar um comentário