sábado, 7 de julho de 2012

Se já não bastasse a indigência técnica e a ruína financeira de seus times, a CBF se vê comandada por um dos apóstolos da ditadura militar e do malufismo. Para completar, o futebol, patrimônio histórico e cultural do povo, vai sendo sequestrado por um canal de televisão....
O que mais falta ocorrer para o Brasil ter a decência de pedir a falência de seu futebol???







 Era mais uma tarde daqueles insuportáveis anos da ditadura, mais precisamente em 75, época da “distensão lenta e gradual”. E falsa. A repressão continuou a ser brutal, fato que o próprio Geisel reconheceria anos mais tarde, quando afirmou em 93 que a tortura era justificável para evitar “um mal maior” e que era necessária para se “obter uma confissão”.
O povo sofria com o salário arrochado. Falta de liberdade política. Música de péssima qualidade. Ronnie Von, por exemplo, não media consequências ao emplacar canções que entupiam os ouvidos dos incautos da época, hinos (ao mal gosto) cujos títulos não deixavam dúvida de sua índole sanguinária: “Baby de Tal”, “Viva o Chope Escuro”, “Riso Flor”, “Seu Olhar no Meu”, “Cavaleiro de Aruanda” e “Rosto Suado”. Na esteira dos crimes contra a saúde sonora da pobre gente trabalhadora tínhamos ainda um cartel (de drogas pesadas) pra ninguém botar defeito: Pimpinella entoava “Siga Seu Rumo”, Mauro Celso reinventava as entranhas do sistema hegeliano com seu “Farofa-fá-fá”, Jane e Herondi chocavam com o seu chocante “Não se Vá” e Lilian (já sem Leno) ainda tinha peito (voz nunca teve...) para berrar “Eu Sou Rebelde”. E o que falar dos The Silver Jets, do inabalável Reginaldo Rossi?

A mais sofrida sem dúvida, era a torcida do Flamengo, que tinha que engolir Fio Maravilha e Michila no ataque (de risos ou de nervos?) do time.  Eram irmãos. Segundo Jorge Ben, o primeiro o encantava com “jogadas celestiais”. Baita de um gozador o autor da “Banda do Zé Pretinho”.

 Depois dela, em matéria de sofrimento, vinha a sociedade paulista. Que convivia com um legislativo estadual da pior espécie. A sessão do dia 9 de novembro daquele ano é pra lá de emblemática. Nela, o deputado do ARENA, Wadih Helu dava informes sobre os festejos que cercaram a inauguração de uma bica em Capão Bonito, no sul do estado. Verdadeiro ritual cívico e corriqueiro, alimentado com dinheiro público, bem ao gosto dos politiqueiros de seu nível. Como se não bastasse, ele protestava veementemente contra a ausência da TV Cultura na cobertura de tal engodo. O que se devia segundo ele a grande “infiltração de elementos de esquerda no Canal”, a “TV Vietnam Cultura de SP” segundo ele, só mostrava em seus jornais miséria, pobreza, desgraça, mas não mostrava o Brasil como ele realmente era, “em pleno desenvolvimento”, um “verdadeiro oásis no mundo de hoje”. Helu estava possesso. E constante irritação e discursos acalorados seriam sua marca até seu último mandato. No início da década de 2000 ele, na mesma assembleia, se disse favorável a extinção de todas as praças públicas da cidade de SP e a construção em seu lugar de Shoppings e estacionamentos, porque segundo ele as praças eram lugar de “vagabundos, drogados e delinquentes”.

Mas naquela sombria tarde um outro parlamentar, também do ARENA, se encarregaria de lhe dirigir palavras apaziguadoras. Mas só para Wadih. Por que na verdade só ajudou a incendiar o clima e empurrar a polícia política contra a TV Cultura. Dirigindo-se ao governador do estado, o deputado praticamente implorava: “é preciso mais do que nunca uma providência, a fim de que a tranquilidade volte a reinar não só nesta Casa, mas, principalmente, nos lares paulistanos”. Seu recado para o DOI-CODI era clara: “o que não pode continuar é essa omissão”.

Mas Jose Maria Marin, esse é o seu nome, tinha sido muito mais contundente dois dias antes. E com a habilidade própria de políticos da sua cepa, ele deixaria nas entrelinhas uma mensagem claríssima sobre o que era necessário fazer para resolver a “presença comunizante” naquela TV. Em seu discurso ele faz questão de prestar os “melhores cumprimentos a um homem que, de há muito, vem prestando relevantes serviços à coletividade”. Ele e sua “valorosa equipe”. O nome desse homem: Sérgio Fleury. Delegado de Polícia, chefe do DOI-CODI, coordenador das sessões que extraíam “depoimentos” dos presos políticos e chefe – simples assim! – do famigerado “Esquadrão da Morte” de SP. Homem esse, continuava Marin sobre Fleury, “exemplar chefe de família”, “cumpridor de seus deveres e, acima de tudo, com uma vocação das mais raras, das mais elogiáveis”. Compungindo pelo seu próprio elogio, Marin nos confessa que não consegue “entender porque um policial desse quilate, um homem que vem dedicando sua vida inteiramente ao combate ao crime, um homem que por várias vezes colocou em risco não só sua própria vida, mas a vida de seus familiares, não tenha até hoje merecido a devida compreensão de todos aqueles que têm a obrigação de zelar pela tranquilidade e segurança dos lares de São Paulo”. Esses cumprimentos se referiam a uma recente prisão efetuada por Fleury. Esse é um detalhe muito importante.

Porque, na verdade, Marin buscava dirigir a esse delegado uma sinistra mensagem: “Não foi este o primeiro trabalho de capital importância que o delegado Sérgio Paranhos Fleury obteve em favor da coletividade, e tenho certeza absoluta de que também não será o último”.

Fleury parece ter entendido muito bem o recado. Insuflado por tantos “elogios”, poucos dias depois detonava uma operação fulminante na TV Cultura, levando dali direto para os porões do DOI-CODI, Vladimir Herzog, o Vlado. Que seria brutalmente espancado até o último suspiro, o que se daria no dia 25 de outubro. Exatamente 18 dias depois de Marin pronunciar a seguinte ode: “Conhecendo de perto seu caráter, sua vocação de servir, podemos afiançar, sem dúvida alguma, que Sérgio Fleury a ela se dedica com o maior carinho, sem medir esforços ou sacrifícios, para honrar não só a polícia de SP, mas acima de tudo, seu título de delegado de polícia”. A morte de Vlado até hoje nunca foi inteiramente esclarecida. A ditadura desapareceria uma década depois, até Sérgio Fleury apareceria morto – claro que misteriosamente – no litoral paulista. Pra completar: seria enterrado sem passar por autópsia. Eram muitos os obstáculos para esclarecer a morte de Vlado. Só não foi maior do que a recusa do governo de Vanda, quero dizer, da ex-guerrilheira Dilma, em reabrir as investigações sobre o caso, mesmo com as súplicas da OEA. Vlado, sua memória, a dor de sua família e a justiça que ele merecia foram descartados em alguma gaveta do gabinete da “mãe dos brasileiros”. Muito embora fique claro que ela nunca esqueceu o ocorrido. Prova maior: ela se recusa veementemente a receber, respirar - mesmo que por efêmeros segundo - o mesmo ar que o sr. Marín....

Mas voltemos ao nosso personagem (canastrão). Ainda antes do fim da ditadura, Marin se tornaria principal braço-direito de Paulo Salim Maluf. Seria seu vice por dois mandatos. Por conta da desincompatibilização de Maluf, que tentaria se lançar candidato a presidente ameaça que por pouco não se concretizou - Marin assume o governo de SP por 10 meses entre 82 e 83. Servindo-se do instituto do Governador Biônico. Ou seja, Marin foi alçado ao cargo de governador sem ter tido um voto – nem dele mesmo. Excrescência da ditadura, no afã de dar uma fachada democrática ao regime. Mas uma democracia sem povo – o sonho de consumo das Organizações Globo....


E Marin, como perfeito exemplar desses camaleões que sobrevivem no cenário político mesmo com o passar de tantas conjunturas, foi galgando posições importantes, até que resolveu fixar raízes no futebol paulista. Ali se tornou presidente da Federação (82-88). Foi chefe da delegação brasileira no México (86). E depois, quando parecia ter sossegado o facho passou a ocupar um assento vitalício na alta cúpula da CBF. Notícia nova de Marín só voltamos a ter – e então se constatou que ainda estava vivo -  quando ao final da Copa São Paulo Júnior de 2012, simplesmente “embolsou” a medalha que estava reservada para a premiação do jogador Mateus, do Corinthians, time que havia sido campeão. Até que num lance de pura sorte (dependendo do ponto de vista) tornou-se mandatário da CBF, após a fuga do antigo presidente para Boca Ratón na Flórida, que pra lá foi sem responder uma única denúncia, entre tantas, que pesavam contra ele. E Marín, por ser o conselheiro de maior idade  provecta assume mais uma vez. Automaticamente. Impositivamente. Sem nenhum voto. Mais uma vez...

Mas o fato do futebol brasileiro ter esse senhor como cabeça não é nada se levarmos em consideração outras dimensões da enorme crise por qual passa o esporte bretão em terras brasílicas. Ela é também técnica. Nossos técnicos são uns dos piores dessa nossa aldeia global. Que time equatoriano, peruano ou boliviano contrata um treinador brasileiro? Nenhum. Só vemos isso na Birmânia, Índia e Camboja. E mesmo assim taiscoaches fazem mais as vezes de pregadores evangélicos do que instrutores técnicos. Entre um “perseverai e orai” e “vigiai irmão”, os jogadores certamente devem ouvir dezenas de instruções instrutivas do tipo: “vamo lá”, “tem que diblar(sic)” e “tocô se apresentô”. A sorte desses coitados – nos dois casos - é que não devem entender bulhufas de português...

Nem falo de times europeus.... Nossos técnicos têm grande trabalho em conseguir permissão para períodos de estágios nos grandes times do “velho continente”. O campeonato brasileiro tem como craks jogadores veteranos, com mais de 34 anos. Juninho Pernambucano, que não conseguia acompanhar o ritmo do esforçado futebol francês faz milagres dignos de Padre Cícero nas pugnas locais. Todas as grandes contratações são de jogadores sem mercado algum na Europa. Assim foi com Ronaldinho Gaúcho, que fez o favor de jogar algumas partidas pelo Flamengo durante os 14 meses que passou nas noites do Rio. O Botafogo acaba de anunciar a contratação do Seedorf, decano do meio-campo da seleção holandesa. Deco, titular absoluto do Fluminense, não servia pra ser gandulinha no Almeria ou no Famalicão, nem no Apoel (do Chipre!), mas aqui dá passes, dribles e faz jogadas que certamente lhe fazem resgatar a auto-estima, pensar que aqui -  mas somente aqui – ele é o tal, é o Fred Astaire dos gramados...

Com exceção honrosa do Corinthians, os jogadores – podem reparar - ainda se posicionam de acordo com o movimento da bola. O jogador não se coloca em função dos outros jogadores, em função do desenho tático do seu time (algo básico no futebol europeu e argentino, e até chileno). Ou seja, o jogador brasileiro - a não ser os afortunados que vão para a Europa – ainda atuam sob uma perspectiva puramente empírica: marcam a bola, vão aonde a bola está.

Sintomática foi a surra, anticristã e com requintes de crueldade, do Barcelona sobre o Santos no final de 2011. Em 20 minutos já estava 2 x 0 e isso porque Fábregas teve a coragem de perder gols que nem Oscar Niemeyer perderia. Foi visível a freada dos catalães no segundo tempo. Com pena de fazer um mal maior às carreiras dos “meninos da Vila Belmiro”. Mesmo assim alguns jogadores, além do nome do clube, sofreram. Danilo, por exemplo, saiu depois de dar um “jeito” nas costas, com o vaivém de passes de Messi e Cia. Isso não é brincadeira minha gente: um jogador de um time de ponta do país saiu descadeirado de campo por conta do troca-troca de passes do adversário. Coisa de comédia. Vaudeville total e absoluta. Isso sem contar os sujeitos totalmente perdidos, com a mesma cara daqueles figurantes depois que tomavam um tabefe de mão aberta do Bud Spencer, como o Edu Dracena.

E como se não bastasse ainda há uma grave crise financeira. Que não é exclusiva de nossos clubes, mas é mais preocupante, tendo-se em vista que são clubes de estrutura arcaica, muitos administrados sob um véu patrimonialista onde meia dúzia de famílias – no máximo - controlam desde a chave do portão até – o que é muito mais importante – as senhas das contas correntes da entidade. Sem nenhuma fiscalização, sem nenhum controle. Enquanto isso a cartolada cada vez mais rica. É imenso o crescimento do patrimônio de quem se dedica ao sacrifício de presidir um clube de futebol no país. Caso único no mundo em que uma função não-remunerada proporciona ao seu ocupante uma ascensão do patrimônio que pode chegar aos 1.000%! Lapidar, nesse sentido, a frase de um notório dirigente que afirmava a plenos pulmões na imprensa esportiva (e policial): “O Vasco é meu!”. O mesmo dirigente que, por sinal, teve a mala contendo todo o dinheiro da bilheteria de um jogo em São Januário roubada, quando se dirigia para sua.....casa.....

Não só os cartolas dos clubes, mas as próprias federações progridem. Ricas. Nababescas. Erguendo palácios suntuosos em meio ao pântano no qual sucumbem nossos times. Vide a nova sede da CBF no Recreio dos Bandeirantes, orçada em 7 milhões de reais. As entidades federativas, segundo Marcos Alvito, um estudioso do tema,  funcionam hoje como grandes gigolôs do futebol brasileiro: constituem seu dinheiro e patrimônio a custa do suor dos clubes, cada dia mais pobres. Situação em tudo oposto ao que ocorre na Alemanha, onde por lei, as federações são obrigadas a constituir um fundo para financiamento dos clubes. O caso da Alemanha é pertinente para uma outra comparação. Ali há um nítido processo de inclusão cada vez maior do povão nas arenas esportivas. Os ingressos são vendidos a preços populares, vários estádios reconstruíram a chamada geral. Temos o exemplo do Borússia Dortmund, com média de 84 mil torcedores em seu estádio, que é a lotação máxima. Aliás, são pouquíssimos os clubes alemães em crise, endividados, na mão de TVs etc.

Aqui nessas plagas temos o oposto. A geral foi varrida. Cada vez se criam artifícios para dificultar o acesso dos trabalhadores mais humildes às arquibancadas dos estádios. Artifícios que vão desde o valor altíssimo do ingresso até a marcação dos horários dos jogos, 22:00 durante a semana, 21:00 aos sábados. E nisso a principal protagonista – ah, adivinhem -  é a Globo. Com os clubes na mão – vivendo de seus adiantamentos de direitos de transmissão – ela decide os jogos a transmitir, quando, onde. Se pudesse a Globo passaria jogo no horário do Corujão. Vários jogos são adiados pela própria TV, numa afronta ao Estatuto do Torcedor. A Globo chegou ao ponto de impedir que o campeão brasileiro desfile com a taça junto à torcida. Ritual básico e sagrado mesmo em países de nenhuma tradição futebolística como Afeganistão e Taiti. Com a Globo não, a taça do Campeonato só pode ser erguida numa festa (des)organizada por ela num teatro da burguesia da zona sul (Rio) ou da avenida Paulista (Sum Paulo). Nada de estranho para uma emissora que defende uma Democracia sem Povo. Futebol, festa popular, patrimônio da classe trabalhadora, é bom demais. Melhor se puder ser transmitido sem ele no estádio. E por determinação conjunta da CBF e da Globo, a Seleção brasileira só joga fora do país. A Seleção também foi sequestrada. Nunca a população foi tão indiferente a ela. No fundo, os brasileiros sabem que ela agora pertence às Organizações Globo. Dia de convocação da Seleção que antes parava o país, perde hoje até para a reprise do Chaves no SBT.

E a Copa de 2014 chegando. Mas cadê a alma, cadê a história desse futebol? Muitos outros países também estão em crise. Olha o caso da Espanha, não só os clubes estão endividados, o país está todo ele na pendura. Mas certamente o seu treinador e jogadores jogam para a Seleção, e não se comportam como funcionários de uma TV determinada. E o futebol, com todos os problemas, dívidas, celebridades ocas, limitações de ordem técnica etc., ainda é do povo. Mas, e aqui? Como mudar se o que há de mais retrógrado e reacionário se encontra no comando da sua maior entidade? Ou seja, falta tudo. Até pouca vergonha.....









LEONARDO SOARES DOS SANTOS
Historiador, professor do Pólo Universitário da UFF em Campos e flamenguista. E não é ele quem aparece na foto....



Nenhum comentário:

Postar um comentário